A cultura do truque

Golpes, golpistas e picaretas de todo tipo estão no streaming e na vida real; enganada e engambelada ad nauseam, Erika Palomino examina a epistemologia da malandragem, passando pelo clubbing, pelas modas e pela política.


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Ao passear de controle remoto por títulos recentes, entre séries, filmes e documentários, é possível escolher entre perfis de assassinos e casos escabrosos, com ou sem solução, e por uma verdadeira onda de histórias sobre golpes, golpistas e picaretas em geral, surrealmente inspiradas por fatos reais (ou apenas fatos, como agora aparece na tela, já que, supostamente, todos os “fatos” seriam “reais”.)

Meu estômago seleciona aquelas produções sobre os golpistas. Ou as golpistas. Podemos tomar como ponto de partida aqui, por afinidade, Anna Delvey, que teve sua trajetória adaptada para o streaming pela magnífica produtora Shonda Rhimes em Inventando Anna. Como se sabe, ela penetrou nos círculos da grana e do hype em Nova York, tirando dinheiro de uma galera e embromando várias outras, fingindo ser uma herdeira rica e se hospedando sem pagar em alguns dos melhores hotéis da cidade. A série distrai com a edição ágil, o trabalho divertido do figurino (parte do enredo) e com o próprio roteiro.

Não dá pra não citar também O golpista do Tinder, revoltante perfil do cara cuja trajetória se explica pelo título. Um google rápido antes de escrever essas mal-traçadas linhas me refresca a memória com vários outros filmes a que assisti avidamente.

Por serem “reais”, atuais, contemporâneas, com seus protagonistas vivos e conhecidos, essas duas séries são exemplos da sensação que temos ao vê-las e o que nos leva a querer consumir produtos afins. Uma parte da gente fica incrédula, e tira onda das vítimas: ah, eu jamais cairia nessa. Outra toma a experiência como aviso: bom saber o que aconteceu para evitar que sejamos nós vítimas desse tipo de crime.

Recentemente, fiquei obcecada pela história da mulher que enganou um jogador de futebol italiano se fazendo passar pela Alessandra Ambrosio. Por anos. Acreditando estar ajudando a modelo brasileira a saldar dívidas (ou sei lá o que ela dizia), mandou uma dinheirama para ela, sem nunca ter tido sequer um encontro físico. Esse caso é um case global de “fishing”, que é como se chama quando uma pessoa se passa por outra na internet. A imagem do cara chorando circulou bastante e é bem simbólica. Fico pensando no tamanho da autoestima e da ingenuidade desse homem. Também me pergunto se ele mesmo não chegou a dar um google para ver se ela era Alessandra Ambrosio, por onde andava e o que estava fazendo durante todo esse tempo. Sei lá, fiz várias projeções, várias situações para tentar entender.

Não precisa ir muito longe. Aqui, sempre achei surreal na TV as chamadas para “a última moda” dos golpes, com um jornalismo que no geral banaliza a prática, entre enunciados alarmistas que buscam alertar a população, e as reportagens que quase sempre transferem a culpa para as vítimas. Em nossas redes sociais, toda semana, garanto, ainda aparece alguém avisando que não, não é pra mandar dinheiro. Alguns personagens recentes, como galeristas milionárias andaram pedindo transferências para contatos do celular. Acho que nesse, ninguém caiu.

Porém casos gigantescos e públicos, como o da mãe da supermodelo Carol Trentini, são exemplos de como pessoas sem escrúpulos atingem outras que fazem de tudo, e em minutos, para acudir uma filha em desespero, extorquindo as economias de uma vida.

Houve a época em que os criminosos fingiam nos ter sequestrado – esse panicou pais e mães por bastante tempo, até cair em desuso, substituído, talvez, pelo da troca de número ou de aparelho, mensagem que certamente você deve ter recebido em algum momento também.

Apesar de meus filhos trocarem muito de aparelho, e de número, me atentei a um jeito diferente de eles falarem comigo, e felizmente não caí. Não caí nesse, mas já caí em muitos outros. Não estou aqui pagando de esperta. Nem de esperta ao contrário, como diz a sábia Estamira. Já fui muito e de muitas formas, ad nauseam, enganada, traída, furtada, ludibriada, enrolada, engambelada por pessoas que se aproximaram, funcionários e funcionárias, chefes, amores… Tenho defeito de nascença: eu acredito, confio. Um ex-namorado, certa vez, me aconselhou: você tem que confiar desconfiando. O paradoxo, o jogo de palavras, sempre me intrigou e desde então tento colocar em prática a recomendação.

“Dar um truque” é quase filosofia de vida. Pode ser para muitos. Ah, fui lá e dei um truque. Dei um jeito, me virei. A cultura é tão estabelecida que nos tempos da [coluna] Noite Ilustrada era até categoria de premiação: Truque do Ano (entendedores entenderão). E na época de uma juventude sem grana, nos anos 1990, fazia sucesso o drink EQ (nada mais do que água com gelo e uma rodela de limão se passando por gim tônica), criação da mestra Glaucia Mais Mais no saudoso clube Sra. Krawitz, berço do underground paulistano numa antyga Santa Cecília.

Truqueiros, truqueiras e truqueires de todos os tempos se valem da prática internacional do “name dropping” para conseguir um lugar melhor ao sol. Estive com Fulano, ontem jantei com Beltrane, peguei Sicrane. Ah, e a Internet? Terra fértil para simulacros de toda ordem. Antes, só na mídia impressa, era bem mais difícil. Na vida real, alguns núcleos se mostram mais permissivos. Em São Paulo, uma pessoa-truque pode levar até dois anos para ser descoberta: depois disso, o mercado, a sociedade, o entorno, ejeta o serumani. Ou trabalha e mostra a que veio, ou tem mais gente vindo atrás. Em outros lugares, de tempo mais líquido, é possível ser malandro por muitos e muitos anos, décadas, talvez.

“A malandragem se caracteriza por sua relação esquiva com o mundo do trabalho, e a ela se articulam um personagem e uma escolha política”, escrevem Lilia Schwarcz e Heloisa Starling na bíblia “Brasil: uma biografia” (Companhia das Letras, 2015). Explica que a figura do malandro tem suas origens no século 19, definindo “a figura do sujeito que opera na linha fronteiriça entre o lícito e o ilícito, trabalhando o mínimo possível, vivendo de mulheres, de pequenos expedientes e dos golpes que aplica nos otários”. As autoras recomendam a leitura de Antonio Candido, em A Dialética da Malandragem, ensaio fundamental de 1970 sobre as Memórias de um Sargento de Milícias, de Machado de Assis, de onde podemos passar pelo Macunaíma, de Oswald de Andrade, o “herói sem nenhum caráter”, até chegar, livremente, aos dias de hoje, em que o personagem de Cauã foi preso e solto, Anna na cadeia tem ainda mais seguimores, e o golpista do Tinder arregimenta fãs, enquanto inspira outros lixos mundo afora.

Estamos em tempos de fake news e perfis fake, das vidas fake passadas por filtros e dancinhas idiotas, do “reality-show” (exibição da realidade, na tradução literal and enganosa) e dos (des)governos mentirosos.

Sigo daqui acreditando que podemos melhorar.

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