George Floyd e a origem do racismo no Brasil

De volta a ELLE Brasil, a filósofa Djamila Ribeiro estreia sua coluna em vídeo explorando as origens do racismo no País.


jWs8N9zo origin 948




Djamila Ribeiro sobre George Floyd e as origens do racismo no Brasil

Se preferir, você também pode ler este vídeo:

Hoje a gente vai conversar sobre um assunto muito sério que é discutir esse assassinato sistemático de pessoas negras. Vocês têm acompanhado com certeza o que aconteceu nos EUA com o George Floyd, que foi assassinado pela polícia por um policial que colocou o joelho no pescoço do George Floyd, e ele diz ainda que não conseguia respirar e, mesmo assim, ele continuou. A gente infelizmente acompanhou o assassinato do João Pedro, um menino de 14 anos que estava dentro de casa, ou seja, cumprindo o isolamento social, e a casa dele foi metralhada com mais de 70 tiros. João Pedro foi assassinado com apenas 14 anos. A gente poderia aqui falar de vários outros casos, infelizmente, como o da menina Ágatha Félix de oito anos, da Claudia Ferreira da Silva, Amarildo e tantas outras pessoas que foram assassinadas de maneira brutal.

Importante entender porque isso acontece. Muitas vezes, qual é a nossa reação primeira? Ou é naturalizar ou é achar que aquele território ali é um território em que esse tipo de ação policial é necessária. Ou a gente acha que foi um caso isolado ou ainda, por conta da própria espetacularização que existe de alguns programas de TV, que abordam essas questões de forma extremamente leviana, levando todo um teatro, a questão do espetáculo, a gente se contamina por essa visão e a gente realmente acredita que pessoas negras são criminosas. A gente se acostumou, infelizmente, no Brasil e em vários outros lugares do mundo, a associar pessoas negras a crimes. E de onde vem isso?

Não tem como a gente discutir essas questões sem fazer a discussão necessária da origem social, de onde isso vem. Eu tenho acompanhado algumas discussões muito importantes, algumas pessoas se manifestando de maneira bem incisiva, o que é ótimo, porém eu penso que não tem como a gente fazer essa discussão de maneira séria e que realmente as pessoas consigam entender, sem fazer a discussão da construção social do racismo, da construção da sociedade brasileira.

Importante dizer que o Brasil foi um país que teve mais de 300 anos de escravidão negra, isso significa dizer que nesses 354 anos pessoas negras eram mercadoria, e essas pessoas foram tratadas das formas mais aviltantes possíveis. Primeiro, ser transformado em mercadoria. Mulheres negras não podiam cuidar de seus filhos, seus filhos eram vendidos também como escravizados. Uma série de punições e de castigo a essas pessoas que se impunham contra esse sistema.

Existiram teorias que foram feitas para tentar justificar essa “inferioridade” das pessoas negras. Então, quando a gente fala que racismo é coisa de gente ignorante, nada mais equivocado do que isso porque essas teorias, em relação ao racismo científico que a gente chama, as teorias biologizantes do século 19, elas foram pensadas por uma elite intelectual. Mada de pessoas ignorantes. Pessoas que sabiam muito bem o que estavam fazendo. Um exemplo: as teorias biologizantes do século 19, que foram teorias do que a gente chama racismo científico, elas tentaram criar uma ideia de inferioridade das pessoas negras como uma maneira de justificar a dominação da Europa nas Américas. Um exemplo simples: dizer que negros tinham cérebro menor. Dizer que negros não tinham as mesmas capacidades intelectuais do que brancos. Essas teorias foram válidas durante muito tempo e serviram para justificar a opressão das pessoas negras. Por mais que essas teorias hoje sejam ultrapassadas, obviamente, a gente tem teóricos como Gobineau — no Brasil, Nina Rodrigues — que foi um adepto dessa teoria do racismo científico. Por mais que em qualquer espaço sério essas teorias não sejam levadas em consideração, a gente não pode desconsiderar que elas estão impregnadas na memória social das pessoas.

Por que até hoje, quando a gente olha uma pessoa negra, a gente tenta deduzir o que ela é? Geralmente, a gente liga ela ao corpo, ou a gente liga ela a uma visão de uma pessoa suspeita. Então, quando as pessoas negras foram escravizadas, e a Neusa Santos vai falar isso muito bem no livro dela Tornar-se Negro, por conta dessa criação de uma inferiorização. Até hoje a gente associa negro a inferior por causa dessa construção. E esses valores estão impregnados na nossa sociedade por mais que a gente diga muitas vezes que isso é um absurdo ou que a gente diga que a gente não é racista. Importante entender de onde veio isso, foram teorias que elaboraram essa sociedade.

No Brasil, especificamente, no pós-abolição, depois de mais de 300 anos de escravidão, essa mentalidade ainda permanece, essa construção, e as pessoas negras não tiveram as mesmas oportunidades que as pessoas brancas. É só a gente olhar no pós-abolição. A gente precisa conhecer os fatos históricos. O que acontece muito com a gente é que a gente não conhece esses fatos que criaram essas desigualdades. A gente pode falar de vários, como a constituição do império de 1824, em que só poderiam estudar cidadãos livres. Mas quem eram cidadãos em 1824? Logo, pessoas negras não podiam estudar. A gente pode lembrar da lei de terras de 1850, por exemplo. A partir daquele momento, só podia ter acesso à terra quem comprasse a terra do estado. E quem podia comprar terra em 1850? E aí depois do pós abolição, no que a gente chama de processo de industrialização do Brasil, houve incentivo da vinda dos imigrantes para cá, para cumprir o que a gente chama de política oficial do branqueamento, que foi uma política porque eles acreditavam que a população negra representava atraso, e era importante naquele momento branquear a população. Então, com esses dados aqui que eu trouxe pra vocês, a gente consegue entender que tem toda essa construção de colocar pessoas negras como inferior, negar oportunidade pra essas pessoas e pelo fato delas não terem tido as mesmas oportunidades é que começam vários processos, como o de favelização, por exemplo, já que a população negra não foi pensada nessa política de urbanismo, e de várias desigualdades e várias defasagens que a população negra enfrenta e passa no Brasil.

Então, por que que quando você olha um homem negro na rua, muitas vezes você atravessa a calçada? De onde vem esse seu ensinamento de que um homem negro é suspeito? É importante entender todas essas teorias que foram criadas e que ficam impregnadas na nossa memória social.

Há a associação também do negro à inferioridade e há essa associação do negro à criminalidade. Existiu uma lei no Brasil, que ficou conhecida como a lei da vadiagem de 1941, que significava prender as pessoas que estavam na rua sem fazer nada, e na sua grande maioria eram homens negros. Mas por que eles estavam na rua? Porque eles não tinham emprego. E por que eles não tinham emprego? A gente olha lá atrás todo o histórico que fez com que essa população não tivesse acesso a oportunidades. Então, todas essas construções fazem com que a gente naturalize esse lugar do negro como suspeito, como aquele que a gente tem que temer ou como aquele que a gente deve olhar como perigoso, como agressivo e como violento.

Importante dizer que a mídia contribuiu e muito para isso tendo como base essas construções, ao colocar homens negros sempre em papéis de bandido, de criminoso e nunca no sentido de explorar as nossas diversas possibilidades como seres humanos. Então, por que quando a gente olha o que acontece no Brasil, por exemplo, quando a gente vê essa série de assassinatos de jovens negros, a gente muitas vezes não se mobiliza ou não para? Porque a gente já naturalizou que pessoas negras, sobretudo as que vivem em territórios periféricos, territórios que foram criminalizados historicamente, são pessoas que estão no seu lugar devido e provavelmente são pessoas que deviam alguma coisa e deveriam ser tratadas dessa maneira.

Acho que é fundamental a gente investigar de onde isso vem. A gente entender como essas desigualdades foram sendo construídas historicamente. A gente fala, por exemplo, da guerra às drogas. Os movimentos negros no Brasil lutam pela descriminalização das drogas, o que significa que a gente já associa, quando a gente fala em droga, a gente lembra de filmes que foram feitos no Brasil, lembra de favelas e traficantes negros nas favelas. A gente esquece, por exemplo, que drogas também são consumidas em vários outros espaços. Tem toda essa fixação sempre em colocar a periferia, sempre em colocar as pessoas negras como criminosas. E isso não é à toa. É resultado de ações deliberadas. Por isso, a gente precisa fazer uma discussão muito honesta e muito verdadeira sobre esse tema e ela só pode ser uma discussão honesta e verdadeira quando a gente investiga a origem social das desigualdades, ou melhor, o que faz com que a gente olhe pra população negra dessa maneira. O que faz com que a gente tenha internalizado que pessoas negras são de determinadas maneiras e a humanidade só é um direito das pessoas brancas.

Todos esses casos que acontecem no Brasil e o que aconteceu com George Floyd, a gente precisa, de fato, nos manifestarmos contra esse tipo de violência, entender que num país que a cada 23 minutos um jovem negro é assassinado, a gente tem um problema sistemático de violência para com essa juventude. A gente tem um problema sistemático de naturalização contra essa juventude. A gente precisa entender que é necessário discutir uma outra segurança pública e que nesses territórios de periferia o estado só chega, infelizmente, na forma da repressão e na forma da criminalização daqueles territórios. Precisa chegar na forma da inclusão, de política pública, educação, saúde, saneamento básico, moradia. Por isso que são questões estruturais, porque estruturam toda a sociedade brasileira. E fazer o debate da segurança pública de forma que a gente consiga de fato compreendê-lo só é possível se a gente entende de onde vêm essas construções e, mais uma vez, nos mostra o quanto as pessoas brancas precisam discutir esses temas com seriedade e entender que faz parte também dessa discussão.

Essa discussão é uma discussão que diz respeito à sociedade brasileira porque não é possível que a gente siga naturalizando a morte de crianças negras, de pessoas negras, e que isso não gere como diz Denise Ferreira, uma filósofa, uma crise ética no nosso país. Existem autoras muito importantes que fazem essa discussão, como Juliana Borges, Angela Davis e tantas outras e outros que fazem a discussão do encarceramento em massa, da justiça criminal, dessa construção de associar pessoas negras a pessoas criminosas.

Um ponto que me chamou muita atenção em relação ao assassinato do João Pedro é que algumas pessoas diziam, “Ah, mas ele era inocente. Logo o que aconteceu foi um absurdo”. Por que essa fixação em colocá-lo como inocente? Porque a gente já parte do pressuposto de que aquele menino, por ser um menino negro morador de periferia, era “criminoso”. A gente já parte do pressuposto de que para pessoas negras, a gente precisa afirmar o tempo todo que ela era inocente sem entender todas essas construções nada inocentes, que empurram as pessoas negras para esses lugares, para esse tipo de desumanização. Então, acho que é muito importante fazer essa discussão com seriedade, e não cair nesse lugar comum de que pessoas negras morrem mais no Brasil porque têm mais pessoas negras no Brasil. Mas proporcionalmente pessoas negras morrem mais. E a gente não entender que o mesmo argumento também não serve. Se pessoas negras são maioria, porque nós não somos maioria nas universidades, por que nós não somos maioria nos espaços de poder? A gente só consegue isso lendo e entendendo a realidade.

Para terminar, acho que é muito importante frisar que a empatia é uma construção intelectual e política. A gente tem falado muito em empatia no Brasil hoje, mas a gente às vezes fala em empatia como se fosse algo que vai brotar espontaneamente. A empatia exige esforço da gente. Eu só vou entender uma realidade quando eu leio sobre aquele realidade. É muito importante, sobretudo quem tem acesso à educação e à informação, buscar esses conhecimentos porque quando eu fui ler sobre a história negra no Brasil que eu fui entender todas essas construções. Foi aí que eu fui entender a origem social das desigualdades. E aí, quando eu entendo, eu vou ter uma postura política de lutar contra esse estado de coisas, então exige de mim um empenho, exige de mim um esforço, exige de mim uma responsabilidade em me posicionar contra esse estado de coisas porque o silêncio é cúmplice, o silêncio é omisso. E é fundamental que a gente desenvolva a empatia, mas a empatia dentro dessa perspectiva, que vai exigir de nós empenho, inclusive pra matar o opressor dentro de nós como diz muito bem Audre Lorde.

Então, como diz Angela Davis, não basta não ser racista, é necessário ser antirracista. Com essa afirmativa, Davis nos convoca à ação de fato, e a gente precisa pensar outras teorias que restituam às pessoas negras humanidade, e que quebrem com essa visão colonial de sempre inferiorizar as pessoas negras e colocá-las naquele lugar naturalizado de violência.

Espero que eu tenha contribuído com vocês, vou deixar algumas dicas de leitura, como Encarceramento em Massa, da Juliana Borges, A Nova Segregação da Michelle Alexander, que é um livro muito importante pra gente entender essas questões, para que a gente possa debater de fato esses temas com a seriedade que ele merece no Brasil. Para que mais nenhuma mãe tenha que enterrar seus filhos e ainda ter que sofrer, muitas vezes, com a segunda morte dos seus filhos, que é a morte da dignidade, a morte da humanidade de seus filhos.

Djamila Ribeiro é mestra em filosofia política, best-seller no Brasil e autora de livros como Lugar de Fala, Quem Tem Medo do Feminismo Negro e Pequeno Manual Antirracista.

Para ler conteúdos exclusivos e multimídia, assine a ELLE View, nossa revista digital mensal para assinantes