A Solidão é nada?

Todos vamos ter que enfrentar esse sentimento um dia – e o distanciamento físico está longe de ser o principal responsável por isso.





“Solidão é lava que cobre tudo.
Amargura em minha boca, sorri seus dentes de chuva.
Solidão palavra cavada no coração
Resignado e mudo
no compasso da desilusão”

Os lindos versos escritos pelo elegante Paulinho da Viola para a música que dá título ao álbum de 1972, A dança da solidão, apesar da cadência que se consolida pela perfeita voz de Marisa Monte (que a regravou em Cor de rosa e carvão), nos dá a dimensão da avalanche de desconfortos íntimos e físicos que a solidão provoca.

Embora seja assunto recorrente e protagonista de grandes clássicos das artes em geral, esse sentimento pode ser muito comum, muito humano, mas nem um pouco desejável e nada poético na prática. Tanto que ele aparece descrito como sintoma ou causa de diversos transtornos psíquicos, e há estudos sérios internacionais que notificam que a solidão pode diminuir a expectativa de vida tanto quanto o alcoolismo e a dependência química.

Mas, apesar de ser foco de estudos clínicos atuais, a solidão é um sentimento, assim como o ódio, o medo ou o amor. E é tão comum que todos conhecemos ou vamos conhecer em algum momento da vida. E é saudável que estejamos dispostos a compreender e conviver com ela, pois para alguns pode ser extremamente perigoso esse sentimento.

Segundo o filósofo grego Aristóteles, somos seres sociais, ou seja, nascemos para viver em coletividade. E penso que não é difícil concordar com essa ideia, uma vez que, assim como todos experimentamos a solidão em algum momento da vida, experimentamos também a sensação de bem-estar na companhia de uma ou mais pessoas por quem nutrimos afeto ou algum nível de interesse.

Nesses tempos de distanciamento social necessário para a prevenção do contágio pela Covid-19, tem-se falado muito em solidão. Mas o fato é que a sensação de vazio, desproteção, não pertencimento e tristeza, que costuma caracterizar a solidão, não é nova nem no Brasil e nem no mundo.

O fato de sermos seres sociais não significa que a sociabilidade nos livra da solidão. Pessoas podem se sentir sozinhas, mesmo em meio a uma multidão de gente ou em um polo de interação social que se une por afeições ou afinidades. Do mesmo modo, há pessoas que se sentem muito bem na companhia de si mesmas e até preferem não ter ninguém por perto. Essa opção pelo distanciamento social permanente é chamada de solitude.

Devemos deixar para a medicina e áreas correlatas a função de investigar os possíveis efeitos físicos e/ou causas orgânicas do sentimento de solidão. Mas a reflexão sobre o que pode estar determinando o crescente número de pessoas se sentindo sozinhas, muito antes do começo da pandemia, podemos e precisamos fazer.

Depois de Aristóteles, muitos outros grandes articuladores do pensamento universal corroboraram a ideia de que somos seres que necessitam do contato e da interação social. Marx e Engels, por exemplo, atribuíram aos ideais individualistas da burguesia, motivados pela competitividade, que é a essência dos meios de produção, a ilusão de que sozinhos somos mais felizes ou melhores.

Nos dias de hoje, toda e qualquer cobrança social segue a lógica da competitividade, que ganhou contornos narcisistas devido à exigência da alta produtividade e das heroicas conquistas (sempre materiais ou ligadas à materialidade) como símbolo de valor humano.

Nesse cenário, não sobra espaço para o exercício da amorosidade das relações, à medida que não vemos pessoas, vemos competidores e investidores (aqueles que barganham capital emocional para alimentar nossa performance de superioridade diante dos outros competidores. Em outras palavras, investidores são competidores menos expressivos, que podem nos aplaudir e reverenciar, mesmo que na intenção escusa de também nos transformar em investidores para eles mesmos).

A impressão que fica nítida é que nossa solidão vem da desconexão que sofremos de nós mesmos, entre nossos valores e as necessidades criadas pela sociedade atual, que nos coloca em uma eterna maratona de busca por superação do outro, e não pela construção de vínculos humanos verdadeiros e afetivamente nutritivos.

É impossível se sentir acolhido em um ambiente que alimenta uma aura de esvaziamento afetivo, mesmo quando há proximidade física. E essa percepção, que emerge diante da necessidade de distanciamento físico, descortina a naturalização da ausência afetiva, materializando o desconforto, a sensação de desproteção e de não pertencimento.

Se quisermos pegar na unha o touro devastador chamado solidão, precisamos nos munir de uma lupa potente chamada coragem, que nos permita ver quantas fissuras subjetivas essa inversão de valores humanos causou. Depois de localizá-las, precisamos entender que essas fissuras só podem ser restauradas a partir de um pacto social pela valorização da verdadeira sociabilidade, que inclui respeito, consideração, empatia, gosto pela diversidade e, acima de tudo, o entendimento de que somos muito melhores quando reverenciamos a completude essencial do viver em coletividade.

Ou, então, dançaremos eternamente resignados no triste compasso de uma inexplicável desilusão diante da precariedade afetiva do individualismo e do amortecimento emocional do atual narcisismo social. Daí, talvez cheguemos ao estágio de evolução fundamental onde, mesmo que haja distância física, a proximidade emocional estará devidamente construída e capacitada para nos nutrir de afeto.

Joice Berth é arquiteta, urbanista, escritora, feminista e apaixonada por uma boa série. É autora do livro O que é empoderamento, da coleção Femininos Plurais.

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