Afinal, o que você está vestindo importa?

A partir da cultura dos créditos dos looks do Oscar, Erika Palomino reflete sobre o que nos define e sobre a sublime introspecção de Nomadland.





Metade da graça de ver o Oscar é o tapete vermelho e ver o que as estrelas do cinema estão usando. Será? Esse pensamento é culpa da gente mesmo, remonta a um tempo jurássico do jornalismo de moda, da era das gryphys, quando a marca que as atrizes vestiam era definidora. Como se sabe, esse sistema levou à ressurreição da alta-costura; à eleição de personal stylists ao próprio status de celebridades; à produção de peças em que estilistas criavam justamente para este momento do ano, e à consagração de nomes após êxitos e comentários positivos sobre a escolha das atrizes – e, da mesma forma, ao chocho global diante de um look errado ou fora do tom para cada ano, diante do Zeitgeist corrente (sim: Bjork, Cher etc). O sistema das peças emprestadas para as atrizes (e atores, mas vamos focar aqui mais no vestuário das atrizes) movimenta também a alta-joalheria, cabeleireiros, maquiadores, PRs… ou seja… Hollywood.

A criatura chega em frente a repórteres e cinegrafistas, e a pergunta já vem: “o que você está usando”? Desde 2015, com o movimento #askhermore, ou pergunte algo mais para ela, não é mais de bom tom lançar a questão assim na lata. Porque obviamente há muito mais coisas importantes nessa vida do que o que você está usando. Até mesmo no “tapete vermelho” (eita conceito cafona) e numa cerimônia de premiação importante como a do Oscar, que movimenta de fato a indústria para o restante do ano e para o restante da carreira de profissionais deste segmento, em todas as áreas de atuação. Além disso, o Oscar é mais uma daquelas oportunidades que os americanos usam para a narrativa de superioridade wasp deles sobre o “resto do mundo”.

Críticas a edições brancas demais, masculinas demais, sexistas demais, xenófobas demais, vieram num crescendo, refletindo (bem pouco, vai) o pensamento corrente nas sociedades nos dias de hoje, na agenda que saiu das ruas para ganhar territórios como “o grande prêmio do cinema”.

Daí que as equipes de PR divulgam depois da passagem de sua cliente o crédito da roupa em questão, às vezes até mesmo antes, evitando esse constrangimento mútuo e a cara de tédio da artista. Tipo: really? Porque queremos ser valorizadas pelo que realizamos, pelo trabalho que fazemos. Não queremos ser reduzidas a um crédito, a uma peça de guarda-roupa, ainda mais emprestada.

O que também não quer dizer que a gente não queira saber de onde é a roupa que a pessoa está usando. Quando a roupa é muito bonita, quando ficou muito legal na atriz, quando ela passa algum tipo de mensagem ou comunica um código da moda, ou que nos cause algum tipo de emoção. Porque roupas também emocionam. E uma imagem de mulher bem construída também é algo admirável, idílico, sublime, especial.

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A diretora Chloé Zhao no tapete vermelho do Oscar.Foto: Getty Images

A diretora Chloé Zhao quebrou tudo neste ano usando um vestido longo bege de tricô com um par de tênis brancos. O cabelo ela repartiu no meio e mandou duas tranças, como se feitas por uma criança de oito anos, e o que parecia ser zero maquiagem. Eu não vi o Oscar este ano, mas vi a imagem da diretora, porque ela correu o mundo, porque ela ganhou em categorias importantes (melhor direção, melhor filme) com sua obra excepcional – e que me marcou profundamente: penso nele todos os dias desde que o vi, e não vejo a hora de rever.

Chloé Zhao fez o que se chama de statement. Parecia querer dizer: olha, isso não é importante. Fez história com seu filme, seus prêmios e seu “dressing down”, seu visual desmontado. O vestido, diga-se de passagem, é da marca francesa Hermès. Ficou genial genial genial e perfeito para esses tempos pandêmicos, quando de fato todo o assunto da moda parece fora de lugar, e deve ser tratado com delicadeza e sensibilidade para que a gente não seja confundido com futilidade, superficialidade, alienação, desconexão com a realidade mais dura que nossas gerações já viveram.

Nomadland também nos/me faz refletir sobre uma série de questões. A solidão, o desprendimento, o vazio, a morte, a idade, o presente, os extremos, a estrada, o pertencimento, as perdas, a liberdade, o que é realmente importante, o que vamos levar, o que nos define. Nosso endereço, nossas “coisas”, pertences (a própria palavra já soa maluca aqui), objetos? Quem somos, quando não temos nada? Os nômades do filme (e da vida real, que também aparecem no filme e também foram à premiação) se reúnem em feiras de rolo, de troca, fazem escambo o tempo todo, usam roupas fora do tamanho, como se tudo tivesse sido ganho de alguém, de segunda mão, reaproveitadas, repassadas. Refletem a seu modo o sistema de precariedades em que tais pessoas sobrevivem ou mesmo vivem. Parece precário para a gente, que tem aqui outros “padrões”, e isso também nos faz pensar: aguentaríamos viver assim? Do que precisamos pra “viver”? Uma cama, um chuveiro, roupas limpas, um banheiro? O que preferir: a estabilidade e o conforto ou poder ir para outro canto quando der na telha?

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Frances McDormand em Nomadland.Foto: Divulgação

E Frances McDormand, hein? Tinha que levar mesmo o Oscar de melhor atriz. Que mulher fantástica. Que potência. Você tem a certeza de que ela é assim, que aquilo, na verdade, é um documentário. Ela nos faz transcender em sua interpretação, que é de uma humanidade, uma concentração. Loucura.

Logo no começo deste espaço aqui na ELLE
escrevi sobre esse exercício de desapegar do que não precisamos mais, do que não mais nos serve, por um motivo ou por outros. Continuamos em pandemia, não tão isolados como antes ou como deveríamos, e estamos diferentes. Há ainda um pensamento sobre a ideia de simplicidade, conceito que cada um entende como quer ou pode. Chloé Zhao deu show de simplicidade, com seu look no Oscar e, mais importante, com essa cinematografia espetacular, sofisticada em sua simplicidade e em sua essência, depurada em uma estética crua e, por isso, desconcertante.

Como trilha, recomendo ainda a obra do pianista e compositor Ludovico Einaudi, que ilustra tão lindamente o filme – e muitas manhãs introspectivas em minha vida.

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