Ter, ser e vestir

Erika Palomino fala sobre verbos que transitam entre o consumo e o cotidiano na gramática da pandemia.


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Muita gente anda por aí de bouas com a máscara no queixo, mas a pandemia, os efeitos dela na gente e em nosso futuro vão além da zoom-shirt superando o hype do athleisure. Analistas e trendhunters sempre à parte, a essa altura nada disso parece fazer sentido. Os tempos de hoje são intransigentes. O Brasil não é mesmo para amadores.

Ainda que a diferença esteja no tipo de barco com o qual enfrentamos a tormenta (a desigualdade grita do centro para as pontas e a crise provocada pela Covid-19 deve levar à maior queda no padrão de vida do país desde os anos 1940), o vírus chacoalha também conceitos sobre o que vestir, como ser, o que ter e de que forma queremos pertencer. Verbos que transitam entre o consumo e o cotidiano, nos atravessando tanto na superfície quanto na nossa mais sincera essência.

O isolamento social nos fez conviver de perto com aquela pessoa que às vezes mais tentamos evitar: a gemt. Nesse lugar, desmontadas de nos vestirmos para onde vamos, na (des)construção de quem somos a partir do que fazemos, e na roupa como status social; como comparação, como elemento que nos diferencia, quem é que somos, afinal? Neste momento, o que está “na moda” é o encontro: com você.


Agora, falo por mim. Quarentenada desde o longínquo mês de março, desde então pude me dar ao luxo de freqüentar apenas farmácias, clínicas e hospitais veterinários; mercadinhos e mercados. Meu look? O que dá. O que dá para produzir, o que está limpo, o que me deixa confortável e pronta para mais um dia esquisito.

Mais do que aproveitar o tempo livre (qual mesmo?) para “arrumar o closet”, fizemos o que há muito ensaiava, sem coragem para colocar em prática: mudar de casa, downsize. Em inglês, fica mesmo com cara de “tendência”, mas no bom português significa diminuir, ficar menor, desapegar, entender que vida temos, e qual queremos, precisamos ou podemos ter. E o que jogar fora, o que doar, o que vender, o que deixar ir. Desapego nos olhos dos outros é refresco, e na gente exige maturidade, determinação e leveza para não sofrer com o processo. Afinal, são apenas “coisas”. Falar é fácil. Fazer é simples – mas não é fácil. Conseguir é… Maravilhoso.

Foi só com essa mudança de casa que encarei de frente minha trecaiada. Pense na quantidade de papelada, jornalada e publicações que fiz com minhas próprias mãos e o suor de meus neurônios em três décadas no mercado editorial. Fora que nunca achei que eu colecionasse nada, e não me considero acumuladora mas, quando vi, descobri que guardava pedras, galhos, bolinhas, bonequinhos, enfeitinhos, caixas, papel de carta, baralhos desencontrados, tesouras (essas eu amo), mais porta-copos e xícaras nadavê, um monte de pano (e eu nem uso pano), mais roupas e sapatos de estimação.

Eu simplesmente tinha coisas demais. E não preciso mais de tanta coisa. Minha vida mudou, o mundo mudou, eu mudei. Percebi que a maioria de tudo o que eu estava guardando eram itens que eu só queria que estivessem ali, e não algo “em uso”. Eu queria ter. Coisas de que eu gostava? Sim, mas nada que eu realmente “precisasse”. Com o planeta em surto, a ansiedade corroendo nossos nervos, a hora é de descomplicar, simplificar.

Voltei para analisar gavetas e armários depois de ter lido e relido a Marie Kondo. Nas minhas insônias, era quase relaxante ver no YouTube as mulheres coreanas e japonesas guardando seus pertences em espaços limpos e bem-organizados. Tirando os extremos, fui lá nesse mindset para me perguntar não somente o que me traz alegria, mas do que preciso para viver. Será mesmo, com a vida que levo hoje, que preciso de uma plataforma salto 14 com estampa de vaca? Por mais que me traga doces lembranças de como eu me vestia para clubes noturnos em 1992, não pretendo – e nem tenho onde – usar isso. Nem com imunidade de rebanho.

Fui ler faz pouco “As Formas da Alegria: o Surpreendente Poder dos Objetos”, mixei com a técnica oriental e com as novas leis da matemática (oh, céus, de quantas camisas pretas preciso para fazer zoom na semana?) e da física: o que vai caber nessa nova versão de mim, na minha nova vida, no novo armário, nas minhas (novas) metas. O que não couber, não coube.

Não estou aqui dando receita de nada (pavor!), ainda mais na quarentena. Não estou meditando todo dia (adoraria, mas não tá dando), não estou fazendo esteira toda semana (longe disso), e adoraria aprender yoga e me alongar sem maiores delongas. Enquanto entendia o que é importante de verdade, olhei com todo o perdão pelo clichê para dentro de mim, para saber onde pretendo chegar, entender propósitos e prioridades. Essa constatação que parece mesmo elementar passa por uma série de etapas e exige abordagens realistas, positivas, de reinvenção de significados, de valores e de coisas. E a alegria não está nas coisas (desculpaí outro clichê). Por mais que a gente goste de moda.

Como disse, falar é mais fácil, e na mudança, ainda assim trouxe “coisas” demais. Estou ainda em processo de arrumação: menos ego, kirida, bem menos. Quer saber? Ando até mais contente – e bem mais leve.

Erika Palomino é jornalista da área de cultura e desde fevereiro de 2019 dirige o Centro Cultural São Paulo. Trabalhou por 17 anos na Folha de S.Paulo, onde foi editora e colunista da Ilustrada. Autora de Babado Forte e A Moda, foi consultora criativa da Melissa por 15 anos. Entre 2001 e 2009, manteve um site de comportamento e uma produtora de conteúdo (a House of Palomino). Erika também é editora e consultora de moda, com mais de 30 anos de atividade no mercado.

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