Dos 12 filhos de vovó Iaiá, 12 eram míopes. Quatro homens e oito mulheres. Somados os graus dos 24 olhos, a conta quase encosta nos 200. Mas um desinformado que achasse os registros fotográficos dos Gonzales jovens passaria batido por essa. Todo mundo sem óculos, mirando os olhinhos na câmera. Parece que se tirava pra sair bonito no retrato. Isso se sobrassem registros. Recife quente e úmida mofou álbum por álbum. O povo morrendo e se apagando do papel. Dos 12 filhos de vovó Iaiá, 12 eram míopes. Tio Primo não.
Tio Primo não era míope, nem meu tio, nem irmão, nem primo de minha mãe e enxergava perfeitamente. Parecia com os nossos e está em quase todas as fotos da família, só que de óculos. Minha mãe, quando explica o nome do não irmão, diz que o tomava por um. Formou a banda dos meninos. Tio Miguel e tio Francisco nas guitarras, tio Geraldo no sax, tio Paulo na bateria e tio Primo no baixo. Primo não tinha família, nem mãe, nem pai, nem nada. Disse que ele era suave. Suave como? Sensível, sei lá. Eu pergunto só pra ouvir a confusão entre suave e sensível.
Eles tocavam um roquezinho pernambucano, segundo ela. Os Epíforas, era o nome da banda. Parece que era uma coisa meio Beatles, no sentido dos gritos e dos desmaios de fãs, parece que tinha coreografia no palco e na plateia e ingressos esgotados. Das 11 faixas que chegaram a gravar, só duas foram composições de tio Primo. Nunca ouvi. As gravações se perderam na cheia de 75, mas consta nas conversas dos que sobraram que eram as lentinhas e que ele chorava toda vez que tocavam. Por isso os óculos.
Tio primo chorava pra amor, pra dor e pra retrato. Chorava pra frente e não pra baixo. Usava óculos pra proteger quem estivesse por perto. Nem sempre funcionava. A depender do motivo da comoção, a lágrima chegava a atingir até três metros. Parece que era feito uma mangueira quando a gente bota o dedo pra fazer jato, sabe? Disse que, na cheia de 66, ele chorou tanto e por tanto tempo, que vovó, pela primeira vez, pediu licença. Vá pra sua casinha, meu amor. As coisas tão começando a secar, molhe de novo não. E ele, lembrando que não tinha casinha, esguichava água salgada pelos olhos competentes. Foi quando ela descobriu que o rapaz era solto na vida e ele se mudou de vez com os 12 irmãos.
Eu o conheci já menina crescida, ele de mangas longas, como nos retratos. E de óculos. Recife quente e úmida e o não filho, recém-chegado de Baixo Paraíso, pra onde foi depois da formatura, empacotado num terno escuro. Era a missa das bodas de ouro de vovó e vovô. Vovô tinha morrido há dois meses, mas parece que a festa tava paga e resolveram manter. A igreja todinha tomada pela família, missa das dez, calor de matar pelo menos mais meia dúzia. As irmãs já começaram a chorar no em nome do pai do padre. E tio Primo firme, molhou-se de suor da testa ao dedinho do pé, mas não molhou ninguém de lágrima.
Tio primo chorava pra amor, pra dor e pra retrato. Chorava pra frente e não pra baixo. Usava óculos pra proteger quem estivesse por perto. Nem sempre funcionava.
Do quinto banco, o dos netos mais velhos, eu vi cada passada de lenço que deu no rosto. Vi a folgadinha no colarinho entre um amém e outro. Vi a boca entortar emocionada na paz de Cristo. Os 12 de vovó Iaiá agarrados e tio Primo no aperto de mão. Os 12 de vovó Iaiá ameaçando transbordar de novo o Capibaribe em ais e uis, e tio Primo tratando de demonstrar a cura da suavidade da juventude.
Do mesmo jeito que entoaram os lamentos, desenterraram tudo que foi piada velha a caminho do buffet. Vovó disse que ia ficar só meia horinha. Tio Paulo lembrou que vovô sempre preferiu a festa profana à festa santa e ela mandou buscar as sandálias. Que esse salto já tá me matando. Começou formalzinho até tio Miguel pegar o microfone. Quase meia hora de Madeira do Rosarinho. Cortaram. Entrou a banda contratada com um frevo-canção. Quando Iaiá prendeu a barra do vestido longo na cintura e fez que venha com a mãozinha ossuda, veio foi filho, neto, genro, nora e agregado aos montes. A pista quase não dá conta. Tio Primo veio não. Seguia sentado na mesa perto da janela. Parece até que tinha desaprendido a ser Gonzales.
Passaram do frevinho pro frevão e, na primeira distração da cerimonialista, tio Miguel pegou o microfone de volta. Pediu licença à viúva recente e se rasgou num discurso gaguejante e meloso pra vovô. Vovó doida pra continuar dançando, o povo aplaudindo pra ver se ele parava, um balão estourou do calor, o garçom derrubou a bandeja de taças no susto, um grupo de netos gritou um aêêêêêê. Tio Paulo já na sexta cerveja puxa um E-pí-foras, E-pí-foras, E-pí-foras! Até vovó fez coro.
Tio Geraldo e tio Francisco surgiram no palco sabe-se lá como, os músicos sumiram. Não tinha sax graças a deus, tio Primo imóvel. Metade do salão gritando Pri-Mo, Pri-Mo, Pri-Mo! Ele vermelho, bochechas pulsantes. Vou não. Alcançam o microfone pra vovó. Venha, meu amor. Ele foi. Começaram pelo hit Casa forte é aqui. A gente é bicho da zona norte, aqui é Casa Forte. Parece que as irmãs todas destravaram a coreografia da cabeça pro corpo. O baixo íntimo na mão de tio Primo. Era como se nunca tivessem se separado. Recife quente e úmida. O salão inundado pelo repertório dos Epíforas. Ele lembrou de todas as notas. Tio Miguel gaguejando na guitarra do mesmo tanto que no discurso. Foram na ordem do LP.
Quando faltavam duas pras lentas, a parte de cima do corpo de tio Primo começou o processo de puxar a umidade da parte de baixo. Pés e pernas murchinhas, barriga e braços preparando a cabeça de baiacu de líquido e não de ar. Do pescoço a água foi subindo pro queixo e pras bochechas, as duas orelhas quase transparentes de tão inchadas e pou, pou, os olhos esbugalharam ao mesmo tempo que estouraram os últimos balões.
O primeiro blem da música de tio Primo saiu junto com a primeira lágrima. Pororoca de comoção e sensibilidade, de suave não tinha nada. Dos 12 filhos, 25 netos, e 33 agregados de vovó Iaiá, 70 perderam os óculos debaixo da cheia. Disse que 70 perderam a linha dançando. Tio Primo fez chover na horizontal até o dia nascer. Ninguém enxergou nada, ninguém passou calor, mas a umidade atingiu os 100%. Parece.
Roberta D´Albuquerque é psicanalista e co-autora do livro Quem manda aqui sou eu (HarperCollins). Atende no seu consultório em São Paulo e escreve mensalmente neste espaço. Acompanhe em @robertadalbuquerque.
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