Bico pétala anticólica 

Sobre copos de transição, acordos ortográficos e a resistência a mudanças impostas.


ilustração com mamadeira e fotos de adultos em PB



Com o cotovelo apoiado na Guanabara que lhe serve de mesa de trabalho, a testa descansando em uma das mãos, às 8h da noite de uma sexta-feira, Cáio, na delicadeza de quem sabe receber, ria e fazia rir entre um gole e outro de água. Era com o fotógrafo que conversava enquanto o telefone desta repórter completava a atualização do aplicativo do gravador. Gastou 10 minutos – que, pensando no tempo dele, são mesmo preciosos – para dizer de sua revolta quanto à queda do acento em jóia. Na reforma ortográfica de janeiro de 2016, entre outras alterações de difícil incorporação, em suas palavras, esse enfeite, que mais parecia uma coroa, que combinava perfeitamente com as quatro letrinhas, foi para as cucuias. Lembrou ainda que os corretores de celular ignoram o fato, os do Word também. São como ele, não gostam de mudanças. E têm toda razão, ele continua, já pensou escrever jóia, uma palavra lustrosa como essa, e ouvir alguém ler jôia? 

Embora faça sentido lhes dizer que cada minuto de Cáio, custe ao Grupo Azaléia cerca de R$ 195, não foi a contratação do executivo português para presidir a gigante da indústria alimentícia que nos levou a entrevistá-lo. Nem mesmo os resultados, tão impressionantes quanto seu salário, que apresentou ao fim dos primeiros meses sentado à cadeira da presidência.

Ao lado do mesmo cotovelo e sobre o mesmo jacarandá, repousa desavergonhadamente a mamadeira do CEO. É ela que contém a água, nem natural, nem gelada, como nos disse Andréia Dóia, secretária que atende a presidência. Ainda segundo ela, há modelos específicos para cada conteúdo, desde que da marca Avent, a favorita de Cáio. As de café são as de 15 cm, para vinhos e sucos, as de 23 cm e as de 33 cm para água. As mamadeiras são trocadas a cada semana, lavadas todos os dias e escaldadas no esterilizador Philips no microondas da copinha dos executivos. “Essas são maravilhosas por causa do bico pétala. É anticólica, sabe?”, ela nos diz enquanto vira a de 15 cm no dorso da mão para checar a temperatura do café.

Cáio ia com seis meses quando dona Léia, sua mãe, o apresentou  ao copinho de transição para água, sucos e leite.  Tentou os estampados, os com alça dupla e até os brilhantes, mas o bebê arremessava conteúdo e continente nas paredes e no chão da casa. Até os três anos, variava as tentativas com a aceitação. “Deixa ele, nunca mamou na mãe, coitadinho.” Com o  nascimento do único filho, foi acometida por uma mastite que quase lhe põe a arrancar os peitos. Precisou tratá-la com antibióticos que tornavam o aleitamento materno desaconselhável. Temporariamente. O pediatra falou em retorno, ela não foi capaz nem de pensar no assunto.

Os colegas de sala já arriscavam até o descarte do canudo, quando Cáio treinou o corpo para resistir deserticamente às seis horas e meia diárias de odisséia escolar européia. Chegava em casa e encontrava a de 33 cm, cheia de água, nem natural, nem gelada, na bancada da cozinha – 310 ml quase que de uma golada só. Foi somente a partir do primeiro cálculo renal que Cáio abriu mão de seu segredo. Fez estréia pública da mamadeira no Halloween de 94, ele com 16 anos, fantasiou-se de bebê andróide e levou consigo 10 Avents cheias do vinho de festa do pai. Foi tamanha a aceitação do Pêra Manca que os amigos não ousaram estranhar o acessório no intervalo da escola na segunda-feira seguinte. Dona Léia, por sua vez, culpada desde os peitos pulsantes de pus até os rins pulsantes de pedra, tratou de fornecer álcool de melhor qualidade para os sortudos que andavam com o filho precioso. A adega de Cáio pai cada vez mais depauperada. Não demorou para a mamadeira se tornar símbolo de boa vida entre os seus. No último ano de escola não havia um único aluno que, em busca de reconhecimento, não tivesse na mochila uma Avent pra chamar de sua.

Notícias da jornada heróica de Cáio o acompanharam até a universidade. Todos conheciam o gajo que fez a alegria das festas escolares. Ele seguiu, ainda sob patrocínio de uma dona Léia já divorciada, animando a noite por onde passava. Era recém-formado quando recebeu o convite para o primeiro cargo de CEO. Mudou-se sem pestanejar para Londres e, já no anúncio de sua contratação, levou como se nada fosse a mamadeira de água ao discurso que fez para a platéia lotada de funcionários. Desde lá até aqui, copos sofrem sério risco de extinção nas salas dos VPs, da direção e da gerência. Assim como são bem-vindos os tapinhas nas costas. Quatro por executivo ao fim de cada reunião. Ao menos até Cáio conseguir arrotar.

Já ao fim da entrevista, ele tinha Shantala marcada para as 21h, nos confessa que a idéia de tentar novamente os copinhos de transição já lhe atravessou a cabeça, mas a imagem de um possível vazamento de líquido de sua boca bonificada lhe causa um medo sem tamanho. “Quem vê de fora, pode creditar meu pavor a uma paranóia, mas os meninos do berçário que frequentei, molhados até a barriga, são para mim o retrato do inferno”.

Em ligação telefônica da Coréia, onde hoje vive, o filho mais velho de Cáio, falou a essa reportagem. “Eu o apóio, naturalmente. Mas de minha parte, prefiro a Nuk”.

Roberta D´Albuquerque é psicanalista e co-autora do livro Quem manda aqui sou eu (HarperCollins). Atende no seu consultório em São Paulo e escreve mensalmente neste espaço. Acompanhe em @robertadalbuquerque.

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