A bossa nova e o medo branco
Como mecanismos sutis do racismo acabaram apagando a paternidade de Johnny Alf na criação de um dos mais importantes movimentos musicais do país.
Em 6 de julho de 2019 o Brasil se despedia de um de seus maiores artistas: João Gilberto. Nenhuma dúvida sobre o imenso rombo na cultura brasileira, bem como sobre o inegável talento de João como expoente da nossa música. Todos os veículos de comunicação noticiaram que havia morrido “o pai” da bossa nova. Essa paternidade musical ele dividia com o não menos lendário Tom Jobim. Na época, essa referência massiva ao grande João Gilberto como o pai da bossa nova me chamou para uma reflexão mais aprofundada sobre esse momento histórico de nascimento daquele que ainda hoje é um dos movimentos musicais mais importantes deste país – dentro e fora dele, pois a bossa nova é um dos ritmos mais ouvidos no mundo todo.
Nos dicionários, assim como, grosso modo, na biologia, pai é aquele que fecunda um óvulo a ser gestado. Até aqui, tudo bem, quer dizer, mais ou menos.
Acho muito difícil que alguém neste país não tenha ouvido, ao menos uma vez, o canto sussurrado de João Gilberto, bem como a maestria habilidosa dos dedos de Tom Jobim acariciando o piano. O marco midiático da bossa nova foi a composição “Chega de Saudade”, de 1958, escrita pela consagrada parceria entre Tom Jobim e Vinicius de Moraes e gravada primeiro pela diva Elizeth Cardoso, e depois por João Gilberto, que fez o violão em ambas as versões. E aí é que temos um problema. Na verdade temos “o” problema, que é mais comum no Brasil do que julgaria nossa emblemática Garota de Ipanema. Por pesquisas pessoais, descobri que quase uma década antes da célebre gravação que daria a paternidade da bossa nova a João Gilberto, essa aclamada e sofisticada sonoridade e formato musical já tinha emergido do piano pelos dedos habilidosos do senhor Alfredo José da Silva, ou Johnny Alf, brilhante pianista, compositor e intérprete. Uma figura histórica que é menos reverenciada do que sua competência e importância exigem, como podemos concluir pelas palavras do jornalista Ruy Castro para a Folha de S. Paulo em 2016: “O Johnny Alf, sem dúvida, foi um grande precursor da bossa nova, na década de 50. É um processo que já vinha desde os anos 40, pelo menos, a bossa nova era apenas uma inovação em cima de uma bossa brasileira que já existia, a conclusão de um processo evolutivo. E o Johnny Alf, assim como o João Donato, já era bastante evoluído dentro desse processo todo, ou seja, ele já era uma bossa nova dez anos antes da bossa nova”.
Nascido em 19 de maio de 1920, no Rio de Janeiro, Alfredo José da Silva perdeu o pai, Antonio, militar combatente da revolução de 1932, quando tinha apenas 3 anos de idade, o que obrigou a mãe Inês Marina da Conceição a trabalhar como doméstica para mantê-lo. Na casa onde a mãe trabalhava, teve a preciosa oportunidade de ter uma boa formação escolar e ainda estudar piano e música erudita já aos 9 anos de idade. Sua inclinação pela música popular negra norte-americana, o jazz, sobretudo pelas charmosas canções que adornavam a sonoplastia do cinema da época, o levou a admirar gênios como Nat King Cole e Cole Porter. Em 1949, entrou para o mundo artístico pelas mãos de Dick Farney e, em 1952, conheceu nas noites musicais cariocas aquele que se tornaria um de seus ilustres pupilos, Tom Jobim. Cerca de 1 ano depois, em 1953, gravaria duas canções que marcariam sua contribuição para a MPB: “Céu e mar” e “Rapaz de bem”, sendo esta última considerada precursora da bossa nova.
Mas onde está o problema? Está nessa paternidade musical deslocada de Johnny Alf para João Gilberto. Mais precisamente, está nos motivos do deslocamento dessa paternidade: o racismo. Mas não o racismo nu e cru, aquele que mata a luz do dia um George Floyd ou deixa um Miguel cair do nono andar de um prédio. Falo do racismo nas suas formas camufladas, despercebidas e que, por isso, mesmo são letais. Uma das minúcias do racismo é a exclusão sutil ou a morte simbólica, como bem escreveu Abdias Nascimento em O genocídio do Negro Brasileiro, aquela que acaba por convencer a própria pessoa negra de que sua relevância é nula ou sua relevância nas questões mais importantes é limitada.
Alf era negro, homossexual, de origem pobre e introspectivo, apesar de simpático. Em uma reportagem sobre o verdadeiro pai da bossa nova, feita por Nilton Corazza, músico, jornalista e editor da revista digital Teclas & Afins, resgatei uma fala de Alf justificando a sua pouca aderência ao movimento e a pouca repercussão de seu primeiro trabalho oficial, o disco “Rapaz de bem”, lançado em 1961, quando a bossa já estava formalizada (e embranquecida): “Isso talvez tenha sido conseqüência de meu temperamento. Sempre estive afastado da patota, porque sou muito desconfiado das pessoas. Os problemas que tive na vida me criaram dificuldades de relacionamento. Em meio de grupinho, nunca estava seguro.”
Em reportagem do The New York Times (ago/20), Nelson Valença, que foi seu produtor por mais de 20 anos disse: “Houve um movimento para promover Tom Jobim, que era rico, branco, jovem, bonito. Talvez ele fosse alguém que poderia ofuscar Tom Jobim.”
Além desse movimento de promoção midiática que os privilegiados tiveram, existia também o medo branco, que se manifesta na presença de pessoas negras que demonstram autonomia e personalidade independente, pois Johnny insistia em manter sua liberdade musical, experimentando e tentando sempre inovar e não se deixar cair no senso comum das gravadoras da época, que viam na bossa nova a oportunidade de confrontar o rock’n’roll norte-americano que dominava o mercado fonográfico mundial.
É claro que Johnny Alf teve seu talento reconhecido e em sua carreira contabiliza mais de 80 composições gravadas por grandes nomes como Chico Buarque e Roberto Menescal. Mas não como deveria, já que foi a fonte onde beberam todos os músicos brancos da bossa nova, como Carlos Lyra, Sergio Ricardo e Vinicius de Moraes. Para aquele que foi mestre não só do grande Tom Jobim, que o apelidou de “Genialf”, mas do próprio João Gilberto, a parte que lhe foi reservada na história da MPB e, principalmente, da bossa nova é ínfima. Podemos afirmar seguramente que se não fosse “Rapaz de Bem” a história da bossa nova talvez não atingisse o respeito internacional que alcançou. Diferentemente do pai branco aclamado pela mídia, João Gilberto, a morte de Johnny Alf em 2010 não foi tão comentada e poucos se lembraram de que se tratava do verdadeiro precursor da Bossa Nova. O plano de fazer desse movimento um marco nas artes musicais do país, embranquecendo o samba e levando ao mundo um Brasil branco, universitário e feliz, distante da realidade dos morros cariocas, perdura até hoje. Se você perguntar ao fã-clube de Beyoncé ou Rihanna sobre a bossa nova, irá ouvir da maioria esmagadora: “É coisa de branco!”, mesmo em meio à demanda por representatividade.
Na questão racial brasileira, há lacunas e invisibilidades que não sabemos, mas que sentimos. A paternidade real da bossa nova, por exemplo, é uma delas. Como disseram os Racionais Mc’s em “Da ponte pra cá”: É Muita treta pra Vinicius de Morais.
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