“Como se fosse um monstro”: mulheres como máquinas de parir

Novo romance de Fabiane Guimarães aborda a desumanização feminina no processo de barriga de aluguel.


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Ilustração: Mariana Baptista



Desde que foi anunciado, Como se fosse um monstro, novo romance de Fabiane Guimarães, me despertou muito interesse. O livro tem como principal foco a personagem Damiana, uma mulher que, na obra, começa tão jovem, pobre e desamparada que nem sequer consegue dizer com certeza se é maior de idade. Damiana, desesperada por dinheiro para cuidar de sua família, que vive num contexto de grande pobreza, aceita ser barriga de aluguel do casal que a admitiu como empregada doméstica – daquelas que dormem no serviço, claro –, por puro capricho do patrão; afinal, se sua esposa não pode ter filhos biológicos, claro que a adoção jamais seria uma opção; o sangue, esse sim, é a coisa mais importante. O DNA passado adiante, a autoridade fundamental do pai, que tem direito a herdeiros, e todo esse papo que, para mim, é tão cansativo quanto horrível. E porque a questão da barriga de aluguel me inflama, eu sabia que precisava ler o livro.

A ótima qualidade da escrita está lá e os fatos fluem rapidamente pelas páginas. Li tudo em poucas horas e estava sempre envolvida, querendo saber mais, desejando chegar ao desfecho e tocada pela jornada de Damiana, uma vítima da estrutura social em que vivemos. Ela, assim como milhares de outras mulheres, são vítimas de um sistema que aprova fenômenos como a barriga de aluguel, e não são todos que enxergam o que está bem ali na superfície, fácil de ser visto: são as mulheres mais vulneráveis, as imigrantes em busca de sobrevivência, as mulheres pobres, os alvos perfeitos para a rede que as explora. Desde o casal que se apresenta com a suposta boa intenção, até o cafetão que monta uma verdadeira fazenda de reprodução onde as mulheres são as fêmeas parideiras.

O que mais me pegou em Como se fosse um monstro, foi ver que o instinto inicial de Damiana estava certo. Ela sentia e, na verdade, sabia, que ser barriga de aluguel não era um bom caminho para sua vida. Me tocou o momento em que, refletindo sobre a possibilidade de vender suas funções reprodutoras e a criança gerada, Damiana pensa em éguas parindo e fábricas. Imagens de desumanização. Símbolos que falam alto pelos fatos: são mulheres coisificadas, com o corpo feito de maquinário.

Também é interessante como o livro está repleto de mulheres que rejeitam a maternidade, sentem repulsa pela gravidez e não conseguem imaginar uma vida com filhos. Essas personagens são bastante veementes em negar o papel de mãe e, mesmo quando na posição de barrigas de aluguel, toleram o período da gestação a duras penas. Para mim, mais uma brecha para dizer: ei, espera aí, alguém precisa escutar essas mulheres. Não somente as mulheres criadas por Fabiane Guimarães. Todas nós.

Damiana pensa em éguas parindo e fábricas. Imagens de desumanização. Símbolos que falam alto pelos fatos: são mulheres coisificadas, com o corpo feito de maquinário.

Há imagens fortes em Como se fosse um monstro. Eu, que há muitos anos me interesso – e me horrorizo – diante do tráfico sexual e da exploração de mulheres vulneráveis, me vi bastante comovida com a ficção que a autora inventou, a ficção tão mergulhada em aspectos da realidade. E pessoas diferentes podem levar o tema e suas conclusões para lugares diferentes, estou plenamente consciente disso, mas vejo como sintomático de um mundo que reduz mulheres às funções biológicas de seus corpos qualquer tentativa de justificar a venda da gravidez e dos bebês.

A história de Damiana é tristíssima. Nenhuma indiferença ou dormência é capaz de diminuir seu impacto. E por isso acho importante que exista uma obra contemporânea que traga o assunto para reflexão. Pela literatura conseguimos explorar o mundo e tocar o que até então nos era tão distante.

Para mim, o final tem um tom melancólico e que, politicamente, me deixa infeliz. Mas cabe a nós, leitores, levantarmos discussões, expressarmos nossos sentimentos e  compartilharmos o modo como nos relacionamos com uma obra. Como leitora, Como se fosse um monstro foi um livro que gostei muito, que me envolveu, me fez pensar bastante e me deu vontade de escrever este texto. Como autora, considero isso um grande sucesso.

Nascida em Juazeiro do Norte, na região do Cariri (CE), em 12 de Fevereiro de 1991, Jarid Arraes é escritora, cordelista, poeta e autora do premiado Redemoinho em dia quente, vencedor do Prêmio Biblioteca Nacional, do APCA de Literatura na Categoria Contos e finalista do Prêmio Jabuti. Jarid também é autora dos livros Um buraco com meu nome, As Lendas de Dandara e Heroínas Negras Brasileiras em 15 cordéis. Atualmente vive em São Paulo (SP), onde criou o Clube da Escrita Para Mulheres e tem mais de 70 títulos publicados em Literatura de Cordel.

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