De todas a maior das bacorentes

Sobre os mistérios e maravilhas contidos em um tubo de pasta de dente.


ilustração coluna roberta dalbuquerque
Ilustração: Mariana Baptista



3Na propaganda do Kolynos Star Gel, depois do tem tubo transparente, você vê, Gabriela escutava sabor bacorente, você sente. Escutava e cantava alto, orgulhosa da palavra nova. Não a conhecia, mas imaginava a boca inteira tomada pelo sabor bacorente, tinha certeza de que era bom. “O que é bacorente?”, deve ter perguntado em casa. E deve ter ouvido o que sempre lhe respondiam: “e não tem dicionário nessa casa não, Gabriela?”. Dicionário tinha, mas bacorente não estava lá. Levou a dúvida pra Mariana, professora da terceira série B, e ouviu de volta um enigmático “bacorente é adjetivo relativo a bacorejar”. Bacorejar estava.

Bacorejar é pressentir, pressagiar. 

À certeza do gosto, Gabriela foi acrescentando uma outra, a de que quando encostasse a Kolynos Star Gel nos dentes, experimentaria o poder de adivinhadora do futuro. Pediu em cantoria que a pasta viesse do supermercado, “por favor, por favor é tão refrescante, é um céu azul”. Ganhou o tubo transparente antes de ir pra escola. “Pra tu escovar direito”, a mãe disse já rindo da reação da menina. Tomou o poder por manifesto, já naquele dia, quando previu a doença que fez Mariana abandonar a turma em pleno ensaio geral de pré São João. “Nem pra festa ela vem”, disse a um grupo de três meninas que se recusam a ensaiar a quadrilha com a professora do terceiro A. Choraram. Teve a tosse de Mariana no dia anterior? Teve. A conversa que ouviu entre a diretora e a coordenadora? Teve também. Mas ainda assim sentiu um quente no peito diferente. Uma segurança que era só dela e que vinha dela. Saía quase que do pulmão pra cabeça da menina. “Tá doente. Não vem nem hoje, nem na festa”. 

Foi construindo pra si a ideia de que os dentes brancos e os pulmões ligados à cabeça faziam dela uma bacorente das grandes. Naquela sexta, no fim do dia, já no pijaminha de manga comprida, ela sentiu de novo o peito esquentar, o pulmão mandou recado pra cabeça e bacorejou pra Gabriela uma Lua cheia, gorda e amarela, mesmo que fosse a vez da minguante e que Garanhuns estivesse tão nublado quanto os olhos das meninas do terceiro B. Ela abriu os dela escancarados diante da lâmpada do abajur, ficou lá, parada, sem piscar, até tudo virar branco. Desligou a luz, fechou os olhos e pronto. Nunca tinha visto lua mais linda. A Lua e um fundo de brilhinhos de todo tamanho invadiram seu campo de visão. Cantou na cabeça em devoção ao próprio dom milhões de estrelinhas, com um céu azul, só pra você. Tem tubo transparente, você vê, sabor bacorente, você sente. E sentiu. Sentiu que a partir dali, seria tudo novo. Dormiu o sono dos magos e das bruxas. De todas a maior das bacorentes. 

Acordou já anunciando futuro. “Mainha vai fazer cuscuz”, enfiou os pés nas pantufas e cruzou o pai no corredor.

– Bora café que hoje tem festa.

– É cuscuz, né?

– Será? Vem ver. E tu é adivinha agora?

Ela respondeu que sim piscando e pode ser que a piscada tenha feito até um plim. O peito não esfriava desde ontem. Ainda mastigava o milho e o queijo assado quando o pulmão mandou mais uma: “daqui eu vou pro banho, banho de esponja, lavo o cabelo e escovo os dentes. Mainha vai gritar que bora, eu vou dizer que pera só um pouquinho. Ela vai abrir a porta, me enxugar de toalha e de abraço. Vai dividir meu cabelo em dois, começar trançando um lado de trás pra frente e o outro de frente pra trás. Vai desmanchar, tentar de novo e de novo”. E foi assim mesmo, todo o bacurejado feito. E vários plins. Na hora de enxugar, Gabriela geladinha, a mãe se demorou mais do que sempre no abraço. Talvez ela tenha misturado ao sabonete e ao xampu um tanto de pasta. Tão refrescante. 

O dia seguiu mágico. “Vai me desenhar pontinhos na bochecha. Amarrar um laço de fita na ponta de cada trança. Painho vai reclamar da demora”, Gabriela pressagiou.

– Já são 10h30, viu? Não é às 11h o negócio?

– Tem que vestir de matuta, e tu também não ajuda nada.

– Eita dificuldade.

– Se for pra ficar reclamando, melhor nem ir.

Vão brigar. Ela já tinha profetizado antes, eu que escrevi só agora. Pois vão brigar, vão entrar no carro calados. Chegar na escola fingindo alegria junina. Comprar fichinhas. O pai vai pra fila do milho, a mãe pra da pamonha e Gabriela pra da maçã do amor que estará maior do que a da canjica. A mãe dirá que é muito açúcar, que isso dá cárie no automático, lá da fila da pamonha mesmo. A quadrilha do segundo ano vai começar. Vai ter balancê, depois passeio na roça. A noiva de segundo vai casar, a chuva vai chover e a cobra vai ser mentira. Plim, plim, plim. Tudo adivinhado bem adivinhadinho. De todas a maior das bacorentes.

Até que um grupo de meninas corre na direção de uma adulta que aponta na porta da quadra. Ela de chapéu e trança de lã ajoelha na altura das crianças. Gabriela não viu quem era nem antes, nem depois. Pensou que o açúcar da maçã podia ter lhe roubado o sabor bacorente. Fechou o olho pra ver de dentro. Mas dentro era céu nublado. Esfregou o rosto em tentativa, esfregou com tanta força que apagou umas duas pintinhas de cada lado. Sentiu passar um fio de vento, encolheu os ombros quadriculados pra frente. A adulta levantou e no microfone anunciaram.

– Chegou tia Mariana. Já já tem quadrilha do terceiro, pessoarrrr!

Saíam os erres na mesma força que saia a água dos olhinhos desbacorentados. A maçã do amor já toda molhada.  A mãe viu de longe, correram uma pra outra. Gabriela queria voltar pra casa.

– Mas por que, Gabi?

– Eu quero escovar o dente.

– Oxe, amor. Por causa da maçã? Tem problema não, filha. 

– Por favor, por favor – as pintinhas que sobraram nadando na bochecha

Mariana surgiu quase que como um feitiço entre as duas, mas o feitiço não era de Gabriela. A menina ia minguada de poder e de gosto de açúcar, não sobrou nenhuma das milhões de estrelinhas.

– Bora dançar, Gabi.

– Vou não.

Empacou. Tentaram a professora, a mãe, o pai, o par, as amigas e nada. O Vulcabras cimentado no chão. A noiva do terceiro casou, a chuva choveu e a cobra era mentira, mas tudo sem Gabriela que voltava pra casa no carro com os pais. Não diziam nada, o ar tão difícil de respirar quanto a fumaça de uma fogueira. Pai e mãe pensaram em ligar o rádio ao mesmo tempo, encostaram as mãos, tudo meio sem jeito. Ligaram. Tava tocando qualquer coisa que ninguém nem ouviu, começaram e acabaram umas três músicas. Até que entrou o intervalo comercial. Já no primeiro tantantan os dois começaram a cantar baixinho, as vozes aumentando o volume como que pra esquecer a briga e a desistência da quadrilha, como que pra animar a menina. Depois do é delicioso, já estavam quase gritando e foi no grito que Gabriela ouviu direitinho tem tubo transparente, você vê. Sabor bubble mint, você sente. A bichinha chorou até o dia seguinte.

 

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