Deixar morrer é permitir a vida 

O desconhecido nos exige coragem, nos exige negar ou aceitar fatos que nem sempre se explicam como gostaríamos.


jarid arraes



Uma das cartas mais temidas do tarô é A Morte. Muitas pessoas se agarram as suas cadeiras, ansiosas, com medo de que esse arcano apareça em uma leitura e que diga que algo muito importante precisa morrer ou já está morto. Seja um relacionamento, um trabalho pelo qual você se dedicou intensamente, uma amizade ou até a morte de uma versão sua; como lidar com o cavaleiro que segura firme sua bandeira dizendo que já chega?

Tenho vivido muitas mortes em minha vida. É um momento confuso em que sinto que preciso aceitar a ida de uma carcaça já muito gasta, mas não reconheço ainda as novas formas que me contornarão. O cavaleiro está parado diante de mim e tenho uma encruzilhada me perguntando por onde vou, mas não compreendo as estradas. A morte da minha versão que me trouxe até aqui é tão firme quanto embaralhada.

Muitas vezes a vida é assim. Não dá tempo de sentir a mudança de temperatura que prenuncia as transformações, quando nos damos conta, o corpo já queima, e o desconforto é tamanho, tão sufocante, que teimamos com os ciclos da existência. O problema é que as transformações, as diferentes estações, as trocas de pele, tudo isso acontece porque faz parte do natural. Caminhamos pelo mundo soltando, pouco a pouco, a camada cutânea que nos veste, e o contato com o externo vai nos libertando do que temos de pior e também de mais bonito. Há uma sabedoria ancestral em abandonar nossas carcaças antes que elas apodreçam. Não seria agradável continuar andando enquanto seguramos algo em putrefação. E por mais que, na verdade, saibamos disso, por mais que seja possível perceber o fedor e a textura, ainda é difícil soltar. Nem sempre porque aquela morte nos assusta, mas também porque o novo é desconhecido, não experimentado, nos exige coragem, nos exige negar ou aceitar fatores que nem sempre se explicam como achamos que precisamos.

Tenho vivido muitas mortes em minha vida. É um momento confuso em que sinto que preciso aceitar a ida de uma carcaça já muito gasta, mas não reconheço ainda as novas formas que me contornarão.

Hoje não sei se necessitamos de todo o mapa antes de começarmos uma nova jornada. Às vezes, a caminho pede que nos entreguemos aos seus relevos, e que pisemos sem calçados nos pedregulhos. É preciso sentir o novo para que ele se manifeste na nossa vida. Sentir não é saber esmiuçar a razão do que morre e do que vive, é se maravilhar com a força selvagem que existe em nós e nos permite ser como serpente astuta, como cobra que não teme o que deixa para trás, porque sabe, num lugar primal, que é o próprio símbolo da transmutação.

Deixar morrer é permitir a vida. Nem sempre saberemos como será viver o novo, mas vivê-lo é inevitável. O arcano d’A Morte chega para todo mundo e é sábio abrir passagem para que o cavalo siga.

A próxima jornada está aqui. Você a abraça?

Nascida em Juazeiro do Norte, na região do Cariri (CE), em 12 de Fevereiro de 1991, Jarid Arraes é escritora, cordelista, poeta e autora do premiado Redemoinho em dia quente, vencedor do Prêmio Biblioteca Nacional, do APCA de Literatura na Categoria Contos e finalista do Prêmio Jabuti. Jarid também é autora dos livros Um buraco com meu nome, As Lendas de Dandara e Heroínas Negras Brasileiras em 15 cordéis. Atualmente vive em São Paulo (SP), onde criou o Clube da Escrita Para Mulheres e tem mais de 70 títulos publicados em Literatura de Cordel.

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