Ditadura da beleza x ditadura da autoaceitação

Qual o problema? A ditadura.


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Ilustração: Victoria Lobo



Primeiro, foi a indústria que, com a necessidade de otimizar a produção, ditava os padrões de beleza aos quais as mulheres deveriam se submeter. Foram décadas de ditadura dizendo que precisávamos ser magras, brancas e jovens se quiséssemos ter alguma chance de sermos vistas pela sociedade e de nos sentir pertencentes a algum lugar. Com essa pressão estética, acabamos adoecendo em busca de um corpo perfeito, da eterna juventude – e o Brasil se tornou o país que mais realiza cirurgias plásticas no mundo. Nossa cultura machista e patriarcal valoriza o corpo e a jovialidade da mulher muito mais do que sua essência, sua inteligência, seu caráter ou qualquer outra coisa que não esteja ligada à estética. Acabamos nos sentindo eternamente insatisfeitas e à procura de ver no espelho alguém que não somos nós.

Registros da Associação Brasileira da Indústria de Higiene Pessoal, Perfumaria e Cosméticos (Abihpec) apontam que as brasileiras gastam 11 vezes mais do que as britânicas quando o assunto é beleza. Entre os procedimentos mais procurados em um estudo feito em 2019, o botox ficou com a segunda posição. Em primeiro ficou o preenchimento, em terceiro, o peeling, em quarto, o laser e, em quinto, a suspensão com fios. Com tanta obsessão pelo “perfeito”, essa ditadura da beleza nos causou estragos emocionais, e nossa saúde mental acabou indo por água abaixo. O resultado disso são milhões de mulheres odiando o próprio corpo e vendo defeitos em seus rostos, o aumento dos casos de depressão e cada vez mais meninas no mundo todo adoecendo com transtorno de imagem. Não é à toa que, recentemente, a Noruega passou a criminalizar o uso de imagens editadas em publicidade online sem aviso.

Túnel do tempo

Imagine a cena.

TV ligada. Milhões de rostos sonhadores grudados na tela. Do lado de lá, meninas a partir de 3 anos desfilam suas cabeleiras cheias de aplique, cílios postiços e dentes de uma alvura que só um tratamento estético poderia garantir. O objetivo? Ganhar o concurso de beleza infantil. Depois de semanas duelando nas competições locais, as “mais bonitas” participam da grande final. Estão empolgadas. Foram as escolhidas, sentem-se belas, maravilhosas, confiantes. O mundo está a seus pés. Mas isso apenas até a grande vencedora ser anunciada. De repente, do alto de seus sapatinhos de salto, elas choram, procuram as mães.

Entre as milhares de crianças que participaram, apenas uma está feliz: a que venceu. Todas as outras amargam uma derrota baseada em nenhuma qualidade ou talento, apenas em seus atributos físicos. Mas elas não têm maturidade para entender isso. Sentem apenas que não são bonitas e que, por isso, foram excluídas.

E ainda tem aquelas do lado de cá. As mais excluídas ainda. As que assistem aos concursos e jamais poderão participar, porque nem consideradas bonitas são. Todas sofrem, todas sofremos.

Do lado de cá ou de lá, crianças aprendem, mesmo sem saber, que não existe nada mais importante do que aparência física. Muitas desenvolvem problemas alimentares por conta do distúrbio de imagem. Muitas passam a vida correndo atrás de um padrão que a própria genética delas jamais vai permitir chegar. E elas crescem assim, fazendo dietas milagrosas, se submetendo a procedimentos estéticos perigosos, ficam deprimidas e carregam o peso de uma autoestima sempre baixa. Essas somos nós, mulheres com seus 40, 50, 60 anos que, mesmo sendo maduras, temos isso impresso no inconsciente e sofremos.

Agora imagine a mesma cena com as meninas de hoje. Substitua a TV por celulares, iPads e computadores. Tudo com a velocidade da internet e com filtros que mudam a imagem que elas não gostam em si mesmas com apenas um toque. Até aquelas que se sentem bem sobre a própria aparência são bombardeadas de imagens de outras meninas que sempre parecem melhores e mais felizes do que elas. É a prisão do ideal estético onde a beleza virou um capital e a aparência, seu principal atributo. Talvez fosse o momento de existir um filtro só para os filtros, não?

Mas (ainda bem que sempre existe um “mas”) muitas mulheres no mundo todo estão dando um basta a esses padrões e começaram a se aceitar mais. E a indústria, que antes ditava os padrões, agora começa a ter que se adaptar a esse grito de liberdade. Hollywood já arrisca a mostrar uma mocinha nem tão padronizada ou certinha assim, séries têm em seus núcleos minorias sendo representadas e redes sociais também começam a escancarar corpos de verdade. Barrigas sem tanquinhos, braços não torneados, pernas com celulite, bundas nem tão empinadas, cabelos grisalhos, cara menos botocada, rugas mais aparentes. São as adeptas do body positive. Um movimento que procura olhar para o próprio corpo de uma forma mais gentil, aceitando que somos perfeitas dentro ou fora dos padrões. Um movimento que teve início lá nos anos 70 com o lema “meu corpo, minhas regras”, que ganhou força graças à internet e que mostra que não é de hoje que estamos cansadas de viver nessa prisão sem grades.

Fim da história e todo mundo feliz do seu jeito? Não. A questão é muito mais complexa. Mulheres que passaram a vida inteira tentando se encaixar em um padrão de beleza não entendem a beleza do corpo mais natural. Já muitas das mulheres que nunca conseguiram fazer parte da turma das “bonitas” e que sempre odiaram alguma parte de seu corpo (muitas vezes até ele inteiro) não conseguem começar a se amar da noite para o dia. Além disso, não são dois grupos vivendo em paz suas escolhas. A turma do botox acha a outra desleixada. E a turma mais natureba tacha a outra de perua. E, para piorar, quando alguém de uma das turmas resolve experimentar o jeito de viver da outra, muitas vezes é julgado de traíra, como se nunca mais pudesse mudar de opinião na vida.

Mulherada, isso nada mais é do que se libertar de um padrão para ficar preso em outro. Não faz sentido ter sempre que nos enquadrar em algum padrão (isso é justamente o que a indústria quer), seja ele qual for. E também não adianta apontarmos o dedo individualmente. É um problema estrutural. Na opinião de SHEt, precisamos tratar isso de forma coletiva, ouvir mais e nos convidar umas às outras ao diálogo. Afinal, já passou da hora de ver o “lado B” da beleza e entender, de uma vez por todas, que as características físicas não são a única coisa que nos define. Abaixo a ditadura, sempre. E, isso, independentemente do lado que você estiver.

Camila Faus e Fernanda Guerreiro são criadoras do @shet_alks. Uma plataforma de conteúdo feita para mulheres que acreditam que a idade dos “enta” rima com experimenta.

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