Donda

Kanye West, seu disco e o nome da mãe.


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Ilustração: Mariana Baptista



Estou aqui ouvindo Donda, o disco-acontecimento do Kanye West que leva o nome de sua mãe.

Donda morreu em 2007, após erros médicos em uma cirurgia estética. O disco fala muito de luto, de perda. Também fala bastante de amor. Amor e perda andam mais juntos do que gostaríamos. Já amor e falta são de certa forma inseparáveis.

Adianto aqui que não pretendo fazer uma crítica do disco nem um julgamento mais ou menos disfarçado para condenar ou inocentar Kanye West do que quer que seja. Não ignoro, fato, suas contradições nem acredito que tudo nele deva ser aceito ou rapidamente compreendido em nome disso ou daquilo. Me coloco aqui em uma posição de escutar um disco que parte do nome da mãe do artista, algo que pretendo comentar.

É interessante propor questões sem resposta, apenas para situar o filho de Donda nessa história. Kanye já foi aquele que Boy George definiu em uma premiação de 2006 como “o primeiro rapper a dizer coisas legais sobre os gays”. Desde então, mais de uma vez se juntou a gente que teve atitudes homofóbicas. Um cara às vezes brilhante em sua percepção da injustiça social e tantas outras um babaca porta-voz do extremismo liberal, inclusive o econômico. Um cara que fala sobre racismo e apoia Donald Trump.

Para muitos, tudo o que ele faz não passa de cinismo, oportunismo, marketing e gosto pelo dinheiro. Pode até ser mesmo, e acredito que haja participação de tudo isso na história em alguma medida. Mas gostaria de abrir mais hipóteses, porque o que me interessa aqui não é uma suposta realidade objetivíssima das intenções de Kanye, mas o que se coloca como questão afetiva, como discussão cultural.

Para além das contradições que estruturam todos nós, ele parece preso em uma briga de foice interna. Não acredito no furor diagnóstico de colocar tudo no chapéu do transtorno bipolar que Kanye e seus chegados já botaram em pauta diversas vezes. Embora seja evidente que isso tem um papel não só nas encrencas, mas no modo de ser dessa pessoa. Um outro lance, digamos, um “transtorno popular”, também entra nessa equação. Da mesma forma, acho empobrecedor rotular tudo como marketing. Dizemos aos quatro ventos que o sistema de classificação e gratificação das redes tem efeitos psíquicos importantes, mas não sabemos precisar sua intensidade ou como se conjugam com outras características de um alguém específico. É dessa relação que se trata.

Às vezes parece que Kanye está ensaiando um monólogo onde ele é ao mesmo tempo Jesus (uma de suas identificações mais carregadas de simbolismo e recorrentes), Zé Povinho, a cruz, as pedras e os romanos.

Donda tem muito Deus, muito Jesus. E aqui o discurso da religião como força de dominação política encontra o Jesus da memória familiar, o do sacrifício e o que se apresenta na carne daquele que sofre e cuja fé o ajuda a suportar. Entre outros. Esse é um impasse que tem sido explorado sem dó nem um pingo de decência pela extrema direita mundo afora. Algo que está longe de ser colocado em pratos que acomodem a complexidade do debate.

Isso não quer dizer que o universo judaico-cristão não esteja mesmo na base constitutiva de opressões as mais diversas enquanto também aparece como escolha e libertação. Enfim, temos o núcleo teórico e também suas “encarnações”. Janaina Paschoal e Padre Júlio; pastor Henrique e Edir Macedo, a coisa aí vai longe.

O soldado de Jesus tem muita semelhança e muita diferença com o revolucionário ateu. Quando eles se encontram na arena política, o que pode separá-los no fim das contas não é exatamente Deus, mas o entendimento sobre o que deve ser feito da vida dos seres humanos e seus destinos.

Mas voltemos a Donda.

Kanye chama pela mãe morta, está em um momento de fraqueza, sente dor. Sua saúde em cheque, o fim do casamento com Kim Kardashian, uma avalanche de notícias sobre os mínimos detalhes de sua vida pessoal, sexual, boatos sobre seus filhos. Que isso se torne sua expressão artística e também indústria de fofoca tem suas complicações óbvias em geral, mas não tão fáceis de explicar.

Em “Jail 1”, seu parceiro Jay Z diz “Donda, estou com seu bebê”, conta que aconselhou o parceiro a largar esse lance de “boné vermelho”, que ambos estão voltando pra casa. O boné é aquele que Kanye usou para apoiar Trump e sua lavagem cerebral, sua barbárie econômica, sua cara de cenoura radioativa, ainda durante as eleições. Kanye depois se arrependeu, mas continuou atravessado pelas paranoias da extrema direita, tipo a que disseminou a desconfiança sobre as vacinas funcionando como uma espécie de duplo do vírus, igualmente mortal.

A questão da paranoia, ele mesmo já disse e cantou isso, não é estranha a Kanye. Mas em vez de botarmos tudo no chapéu de seus problemas psíquicos individuais deveríamos nos perguntar como é que certas mentiras e teorias conspiratórias puderam se disseminar com tanta agressividade e a ponto de se tornarem questão literalmente de vida ou morte. Jay Z tem lá suas questões, talvez possa se questionar sobre para onde vai afinal o caminho das pedras que está trilhando, mas aqui ele fez o que um amigo faz, estar presente.

Voltar para casa tem tudo a ver com mãe, com a figura materna, com sua função. E aí nem tudo são maravilhas. Há uma dimensão mortífera, pode ter ao menos. Voltar para o útero, para o um supostamente completo. Mas também pode ser outra coisa. A função materna, não a do cuidado infalível e onipresente, mas a que oferece também sua falta, nos apresenta a nós e, de certa forma, às coisas do mundo.

Podemos pensar, por exemplo, que o conforto desse amor é um porto seguro para onde sempre podemos voltar, mas onde não podemos permanecer indefinidamente sob pena de desaparecermos de nós mesmos.

Quando Kanye recria a casa de sua mãe em uma cenografia super-realista, mas em um entorno deslocado, talvez esteja se relacionando com isso. O luto às vezes é descrito como um novo nascimento, há inúmeras simbologias nesse sentido. Não existe volta exata ao que se era, é preciso se refazer a partir da perda. E isso é um processo difícil de descrever.

“Jesus Lord” pra mim é uma das faixas-coração do disco. Kanye e seus companheiros Jay Electronica e The Lox colocam questões tão legítimas, fazem falas tão sinceras em sua confusão. É uma música bonita e poderosa.

“E se eu falar com Cristo posso trazer minha mãe de volta à vida?/ E se eu morrer hoje vou encontrá-la no afterlife?/ Mas de volta à realidade onde tudo é tragédia/ É bom ter estratégia pra não virar estatística (…) Me dizem pra viver os sonhos mas tenho pesadelos/ E se eles ganhassem vida talvez eu não estivesse mais aqui.” A letra segue falando de polícia, ideações suicidas, trauma familiar, violência, redenção.

A faixa termina com uma carta do filho de Larry Hoover, ex-líder do Gangster Disciples (aqui máfia e religião se unem no nome, como não é estranho ao gangsta rap. Interessante notar que enquanto mafiosos reais e da ficção se tornaram certo ideal de masculinidade plenamente aceito, seus contrapontos negros viraram sinônimos de criminoso-presidiário).
Hoover foi condenado a mais de 150 anos de prisão pelo assassinato de um dos membros da gangue em 1973. Seu filho fala sobre o sistema prisional, sobre o contexto brutal, degradante e violento das periferias à época, daquilo que o capitalismo cria e defende, e diz que o pai já cumpriu pena o suficiente.

Os GD encerraram sua trajetória de gangue e viraram um grupo político em Chicago. Kanye defendeu Hoover na Casa Branca argumentando, entre outras coisas, que naquela Chicago as gangues, as drogas, as armas e a morte eram a única realidade dos bairros negros. Questionou os pesos e medidas da Justiça de seu país enquanto Trump fingia que ouvia.

Por uma coincidência daquelas de dar nó em pingo d’água, Hoover também é sobrenome do diretor do FBI que não só participou de ações para introduzir drogas em diversos bairros e regiões com maioria de cidadãos negros nos EUA como participou da organização de assassinatos de membros do Partido Panteras Negras. Ele armou, por exemplo, a morte de Fred Hampton, uma liderança brilhante. Um orador raro, educador leitor de Frantz Fanon, promissor, carismático, com grande capacidade de organização.

Com a ajuda de um informante infiltrado, Fred foi drogado e morto enquanto dormia, aos 21 anos (a história é contada no filme Judas e o Messias Negro, outra referência bíblico-política). Hoje ele faria aniversário.

Kanye West, filho da professora Donda e de um ex-Pantera Negra e fotojornalista que se tornou conselheiro cristão.
Em um artigo de Owen Hewitson, professor do Instituto de Psicologia da Universidade de Middlesex, na Inglaterra, li uma coisa interessante sobre discos e nomes de mãe.

O autor no caso se refere a Iris, mãe de Bono do U2, e as músicas que o filho lhe dedicou, especialmente essa que leva seu nome. Ele faz uma pergunta boa: por que não chamar a canção simplesmente de Mãe, por que usar o nome próprio? A essa questão ele oferece três respostas. Primeira: aconteceu aí alguma mudança no domínio do simbólico, algo que deslocou a mãe para a mulher, a pessoa, mudança essa que daria notícia de que algo avançou no processo do luto, uma forma de recriar a relação a partir da perda. Segunda: nessa opção se mexeria também o status do filho, como se por um certo ângulo ele pudesse observar esse par de outro jeito. Não mãe e filho, mas Bono e Iris, Donda e Kanye, fazendo notar essa separação. Terceira: o nome da mãe persistiria como uma homenagem permanente à singularidade desta que está sendo cantada.

O autor cita os psicanalistas Sigmund Freud e Jean Laplanche em duas passagens muito bonitas. Laplanche diz que todas as limitações do morto podem ser retrabalhadas, mas o nome é intocável e impossível de metabolizar. Já Freud, em seu famoso texto “Análise terminável e interminável”, diz que o nome é a “rocha do luto”. Essa frase me faz voltar à religiosidade de Kanye, me lembro que nos textos bíblicos a rocha muitas vezes significa Deus, por sua vez citado como aquele que dá a vida. Tipo uma mãe.

De Donda a Deus sigo aqui ouvindo o disco, com seus momentos de brilho, vacilos e repetições. De novo, sem advogar fogo nem perdão, digo que há algo de muito legítimo nele. Sobre Kanye mas também sobre nosso tempo e seus tons apocalípticos.

Penso que mesmo em meio ao foguetório ensurdecedor e acachapante das redes há muita coisa sendo dita por aí sobre o caos que vivemos. O que nos leva à questão dos ouvidos. Como estão os meus, os seus, os nossos?

Vivian Whiteman, jornalista e psicanalista, é editora especial da ELLE e escreve sobre moda, sociedade e comportamento.

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