E no metaverso, você está como?

Sobre o esquema de Mark e cheerleaders do fim dos tempos.


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Há meses foi anunciada mais uma notícia do nosso projeto compartilhado de destruição dos laços sociais e do espaço público. Notícia que foi recebida não com medo ou revolta, mas com aplausos, desfiles de moda e cards coloridos produzidos pelos mais insuspeitos “criativos” do pedaço.

Trata-se do metaverso, novo projeto do dono do Facebook e de meio mundo, Mark Zuckerberg. Assistindo ao mais novo filme da série Matrix lembrei do vilão do episódio 1, que trai a resistência por uma nova chance de tomar a famosa pílula azul, retornando a seu casulo e ao mundo da matrix, agora com o avatar de um homem rico, bonito e famoso.

Em artigo sobre o filme, o filósofo Slavoj Zizek diz que Zuckerberg, sem nenhum exagero, está à frente de um novo projeto feudal. Um neofeudalismo virtual-hype, com interface fofinha, “inclusiva”, apoiado por grandes corporações e baseado em dados de milhões de pessoas. “Mark Zuckerberg ‘tem controle unilateral sobre 3 bilhões de pessoas’ graças à sua posição intocável no topo do Facebook, disse a delatora Frances Haugen a parlamentares britânicos ao demandar uma regulação externa urgente para controlar a gestão das empresas de tecnologia e reduzir o dano por elas infligido à sociedade.”, cita ele no site da Editora Boitempo.

Não vou entrar em detalhes sobre os elementos que ele mobiliza para sua leitura dele do filme nem da tese que levanta, com a qual tenho pontos de discordância, mas focar em um ponto específico, para depois desdobrá-lo em outro.

Milhares de sites no mundo fizeram a ligação Matrix-Metaverso. E a maioria deles foca na questão das máquinas, isso indo desde argumentos sobre o “vício” em tecnologia até exacerbações sobre robôs que tornam a humanidade descartável etc. Já as cheerleaders de Zuck tentam fazer da coisa toda algo seguro, conhecido, acolhedor, com direito ao uso de personagens infantis como isca. As mesmas promessas de democratização que a cada dia se tornam mais incompatíveis com os métodos, estratégias de ação e brechas legais das redes voltam intocadas, como se nada fosse, como se nada tivesse sido revelado em escândalos consecutivos, envolvendo crimes graves de gestão, roubo e manipulação de dados.

Mas o ponto é o seguinte. Isso tudo tem interferido diretamente no que pensamos como espaço público. Espaço de trocas. Isso tudo tem modulado como fazemos nossas trocas. Como nos relacionamos. Como desejamos. Como nos organizamos ou não. O que chamamos de “vício” de forma covarde é na verdade consequência de uma forma de gestão social totalitária e autoritária que é imposta por grandes corporações a título de diversão e interação.

Quantas pessoas você conhece ou você mesme talvez tenha pensado em sair das redes mas não pôde? Porque o trabalho exige. Porque parece que se você não estiver lá você simplesmente deixa de existir. Será mesmo uma opção?

Mas a coisa vai mais longe. O que Zizek nota e que me salta como algo realmente desesperador é que paulatinamente nossas interações fora das redes e na “realidade” estão cada vez mais idênticas. Mecânicas como uma dancinha de TikTok. Condicionadas pelo que o algoritmo nos entrega diariamente como estímulo.

Quantas pessoas você conhece ou você mesme talvez tenha pensado em sair das redes mas não pôde? Porque o trabalho exige. Porque parece que se você não estiver lá você simplesmente deixa de existir. Será mesmo uma opção?

Ora, não é novidade nenhuma o quanto precisamos de estímulos e o quanto nos relacionamos com eles desde que nascemos. Se damos acesso irrestrito para que meia dúzia de empresas tenham o monopólio do mundo não podemos esperar que isso seja sem consequências. Se as escolhas do algoritmo se tornam as nossas e nos aparecem como exercício da nossa liberdade isso também está sendo passado entre gerações, não importa o quanto controlemos, por exemplo, o tempo de tela de nossos filhos.

É mesmo revoltante que irresponsáveis que não se cansam de surfar a onda do momento por dinheiro tenham aderido ao cordão chapa-branca pró-metaverso. E impressionante que bobagens covardes de gurus da internet viralizem sobre o assunto. Na última que li o argumento final era de neutralidade, “não é bom nem ruim”, que uma empresa esteja ampliando seus domínios dessa forma sem nenhuma contrapartida social, e não falo aqui de caridade ou embustes variados, mas de uma chamada pública à responsabilidade e à transparência de ações e projetos.

É possível observar a perversidade de certas coisas quando, por exemplo, o mercado passa meses falando sobre saúde mental, evidentemente da forma mais vendida e adaptacionista possível, para depois demonstrar condescendência total com os agentes desse adoecimento. Um exemplo básico mas ainda assim válido é uma pessoa passar meses sendo impactada por conteúdos hipócritas do tipo “desligue o celular e pegue um livro”, “faça um detox das redes e se cuide”, “perfis mostram falsa felicidade” e de repente passar a receber conteúdos sobre como se vestir, lucrar, investir, arrasar no Metaverso. Em vez de apelar à sanidade de mercado ou a me submeter às regras do Analista de Matrix (ele aparece como um misto de psicanalista e coach de vida, o que, enfim, está por aí…) faço aqui um voto pela loucura que nos dá forças para criar.

Cada vez mais, se quisermos receber os conteúdos que gostamos nos deparamos com a exigência de aceitarmos receber lixo. Lixo preconceituoso, fake news, discurso racista. Tudo em nome da pluralidade. Da liberdade. Mas é obrigatório. Claro, se você não quiser não precisa, mas aí também não recebe a parte boa. Quer ouvir música legal, toma aqui junto esse podcast negacionista antivacina. Você escolhe o que ouve, mas não o que ajuda a financiar. E isso não é só no ambiente online. Estão aí os impressos que publicam insistentemente conteúdos racistas junto com o melhor da arte. Vem no combo. Estão aí os canais de TV com hit mix de discursos classistas, sexistas, homofóbicos e, por que não, defensor de teóricos do fascismo e da milícia, e campanhas inclusivas de empoderamento.

Não à toa todo esse esforço forma um caldo moralista que tenta ao máximo se afastar da prática política, da organização e da ocupação do espaço público para fins não consumistas. As ruas, as praças, os lugares de encontro e circulação, os meios de estar e se mover na cidade, as questões do trabalho, do lazer, da escola, da rotina, do onde ir, dos relacionamentos que se criam, do sexo, do prazer não-pasteurizado. Tudo isso é nosso e devemos reivindicá-lo. Sempre haverá quem nos afogue em explicações, cards donos da verdade e discursos meigos do quanto devemos aceitar tudo como está e nos afundar em uma indignação impotente e em pseudoações que passam paninho na nossa consciência.

Não há nada de natural no capital nem no domínio das corporações, assim como não são naturais as coisas e estruturas que seguem sendo recriadas a partir de certo ponto histórico. O lance não é que estamos condenados e ficamos negando isso, mas pelo contrário, que recalcamos o fato de que temos a capacidade de transformar a nós mesmo e ao mundo.

Que tentem nos convencer de que devemos terceirizar essa tarefa de vida e morte a gente do naipe de Zuckerberg é de fato uma morte horrível. E evitável.

Aliás jamais me esqueço de como começou o Facebook: vários caras babacas, brancos privilegiados, dando notas para meninas e humilhando-as como se estivessem em um mercado humano. E desde lá piorou muito.

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