E SE… desistir fosse possível?

Há muito concedi espaço para a coragem da desesperança. Estar presa a uma existência sem luta, no entanto, é inviável.


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“Perdemos as coisas aos poucos. Algumas coisas, nem nos damos mesmo conta. Acostumamo-nos à perda devagarinho”, escreve Ana Rüshe no texto “Floresta é o nome do mundo: Capitaloceno e resistência na obra de Ursula K. Le Guin”, no recém-publicado Depois do Fim, livro com organização de Fabiane Secches que reúne escritos de pessoas diversas sobre literatura e antropoceno, publicado pela editora Instante em junho.

Mas será que nos acostumamos mesmo? A cada notícia que chega a mim penso sobre a possibilidade de desistir, ou melhor, sobre a impossibilidade de desistir dessa imposição arbitrária chamada vida. Seja montando na nave de algum bilionário para escapar da Terra plana, seja se desconectando da sociedade e vivendo em isolamento ou, ainda, caindo dura numa morte súbita, a pergunta que me ronda é sempre: por que somos obrigadas a viver esse eterno presente imposto pelo que Mark Fisher chamaria “realismo capitalista” e que uma de suas referências, Frederic Jameson, apontaria como as consequências da lógica cultural pós-moderna que estruturou e é estruturante do neoliberalismo atual?

Embora Fisher tenha tentado ser otimista, apontando formas para que possamos escapar desse presente permanente e angustiante, fico pensando sobre o quanto ele mesmo acreditava, de fato, em qualquer possibilidade de subversão. Quando olho para a Europa pegando fogo, ao mesmo tempo em que as lideranças políticas dos países europeus assinam acordos de uso de combustíveis fósseis, só consigo ter certeza de que vivemos uma completa distopia. E se mudar a realidade já é difícil, subverter o irreal me parece ainda mais complexo. A falta de consistência permitida pela constante mudança de narrativa e um total descompromisso com a histórica e com a lógica – típico do realismo capitalista – exigem que nós voltemos ao ponto de partida de qualquer insurgência o tempo todo, nos impossibilitando o sair do lugar. Dessa forma, “o mundo […] vai se apagando, se desfazendo, se desmoronando lentamente”, como disse Fisher, e nós ficamos sem vitórias e exaustas. Talvez sejamos derrotadas mais do que nos acostumamos, vide o número crescente de pessoas ansiosas, deprimidas e estressadas.

Acreditar ou não na mudança, vale dizer, é indiferente para manter as práticas de insurgência. Há muito não acredito na primazia da esperança (e já concedi espaço para a coragem da desesperança) e encontrar formas de desistir me parece uma boa pedida. Mas, como o escritor Alex Castro bem colocou: “as lutas que mais valem a pena ser travadas são justamente aquelas nas quais nenhuma vitória decisiva jamais será possível, que travamos sem esperança e sem otimismo, simplesmente porque nos seria intolerável existir e não lutar”. Se desistir da existência é por demais trágico e estar presa numa existência sem luta é inviável. Em outras palavras, se não podemos realmente desistir, igualmente não parece possível se resignar.

Enquanto a máquina de moer vida capitalista neoliberal patriarcal segue de vento em popa, volto no texto da Ana e nos seus “sonhos maiores”. Citando Le Guin, como ela, encerro:

“Vivemos no capitalismo e seu poder parece inescapável. Mas assim também se parecia o direito divino dos reis. Todo poder humano é passível de resistência e mudança por seres humanos. Resistência e mudança muitas vezes começam na arte. Muitas vezes em nossa arte, a arte das palavras.”

Já que não posso desistir, escrevo.

Marina Colerato é jornalista, está como diretora-presidente do Instituto Modefica, faz mestrado em Ciências Sociais na PUC/SP e reflete sobre política, feminismos e o fim do mundo na sua newsletter Lado B. Você pode acompanhá-la no Instagram @marinacolerato.

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