E se… moda fosse realmente sobre liberdade de expressão?
Moda, é bom lembrar, não é só roupa. Arte, arquitetura, design, beleza, os lugares que vamos e a forma como nos portamos ou falamos estão sujeitas à moda — e igualmente por meio deles buscamos expressar nosso verdadeiro eu. Mas, como você talvez já tenha notado, não temos conseguido muito bem.
Definir o que é moda não é uma missão simples. A empreitada — de tentar definir e entender — a moda já foi assumida por muitas pessoas, inclusive nomes clássicos como Walter Benjamin, Theodor Adorno e Immanuel Kant. Não pretendo entrar nessa seara — que tem se mostrado uma missão bastante difícil —, mas colocar para debate o entendimento comum de que moda é identidade e liberdade de expressão.
No sentido moderno, a moda nasceu no século XVIII com a ascensão do capitalismo mercantil e a revolução industrial. Logo, o surgimento da moda precisa ser localizado dentro desse tempo-espaço onde a produção em escala e a produção em massa trariam enormes mudanças sociais, entre elas um incansável desejo pelo novo e a exacerbação do conflito interno entre diferenciação e pertencimento.
“Tentamos com cada vez mais afinco expressar nossa própria individualidade, mas paradoxalmente o fazemos de tal maneira que muitas vezes conseguimos expressar apenas uma impessoalidade abstrata”, destaca o filósofo Lars Svendsen no livro Moda, uma filosofia.
O resultado do desejo de pertencimento, somado à produção em massa e localizado num universo estético padronizado pela publicidade e grande mídia, dificilmente poderia ser outro senão um vestir homogêneo.
Vejo a série de fotos de Hans Eijkelboom, que resultou no livro People of the Twenty-First Century (Pessoas do Século Vinte e Um, em tradução livre), como um dos exemplos visuais mais contundentes disponíveis hoje sobre esse poder uniformizador da moda.
People of the Twenty-First Century, de Hans Eijkelboom. Reprodução
O fotógrafo passou décadas fotografando pessoas em diferentes países europeus e, posteriormente, organizou as fotografias em série. Nas mais de cem páginas do livro, somos apresentados a padrões que beiram o cômico quando pensamos no tanto de esforço colocado por nós na demonstração da nossa identidade (ou não) por meio da roupa sem nos darmos conta do poder totalizador da moda.
Mas se o projeto de Eijkelboom, como o próprio fotógrafo diz, não é sobre mostrar semelhanças, mas tentar encontrar diferenças, o perfil no Instagram @shitbloggerspost busca exatamente mostrar como estamos soterrados na mesmice a ponto de até as nossas fotos agora terem a mesma luz, o mesmo ângulo, os mesmos elementos, a mesma pose e as mesmas comidas. Ah, e claro, o mesmo rosto, corpo e feições também.
Moda, é bom lembrar, não é só roupa. Arte, arquitetura, design, beleza, os lugares que vamos e a forma como nos portamos ou falamos estão sujeitas à moda — e igualmente por meio deles buscamos expressar nosso verdadeiro eu. Como você talvez já tenha notado, não temos conseguido, apesar dos esforços empreendidos.
Há muito, o sociólogo Georg Simmel chegou à conclusão de que a moda “não pode ser encontrada em sociedades onde o impulso socializante é mais forte que o de diferenciação”, mas será que é possível ser diferente num universo estético homogêneo e totalizante? É possível ser realmente livre e ter identidade onde tudo é produzido e consumido em massa? Por parte de quem faz moda, é possível ser realmente criativo quando produzimos para esse universo estético homogêneo?
Isso me faz pensar sobre liberdade de expressão e valorização do indivíduo. Coisas que temos ouvido desde o surgimento do capitalismo e que nunca foram amplamente alcançadas na prática. Embora defensores do atual modelo de organização econômico geralmente recorram a esses elementos para defendê-lo, para além da uniformização das pessoas numa rápida análise de signos, ousar escapar da padronização resulta em violência. Podemos pegar o discurso que culpabiliza mulheres estupradas e assediadas pelas roupas que elas estavam usando ou ainda meninos jovens que têm medo de usar saia e serem agredidos na rua.
Se moda fosse realmente sobre liberdade de expressão não teríamos medo de nos vestirmos de uma determinada maneira. Mas podemos ir além e imaginar uma sociedade na qual nossos criativos pudessem ser criativos de fato e não almejássemos o “olhar” da Gigi Hadid sobre todas as coisas. Se moda fosse realmente sobre liberdade de expressão, quem sabe poderíamos dizer adeus às lojas de departamento (sejam elas populares ou de luxo) e até mesmo a um sistema que nos diz que nunca estamos adequadas o suficiente para simplesmente sermos. No meio do caminho, poderíamos deixar a noção tóxica de individualidade de lado para resgatar um senso de coletividade tão urgente e tão escasso nos dias atuais. Segundo Simmel, esse seria o fim da moda. Pelo menos como a conhecemos hoje.
Marina Colerato é bacharel em Design de Moda pela Belas Artes, pós-graduanda em Gestão de Projetos pela FGV, pesquisadora independente de economia política,mudanças climáticas e questões de gênero. É editora chefe do site Modefica e é co-fundadora da agência de design e comunicação Futuramoda. Organiza o Buen Vivir Book Club, clube de leitura focado em pós-capitalismo e ecologia a partir de uma perspectiva latino-americana.
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