Eu sou normal?

Não poderia terminar o ano sem discorrer sobre a maior dúvida de todas, a versão adulta do monstro que mora debaixo da cama. 


Ilustração de uma mão segurando um espelho com um ponto de interrogação
Ilustração: Gustavo Balducci



A pergunta que você mais recebe quando é educadora sexual é, sem sombra de dúvidas, esta: “É normal… (insira aqui algo completamente normal ou comum)?” Essa obsessão com os conceitos de normalidade e padronização dos sentidos é algo curioso de ir percebendo ao longo do trabalho. Não à toa, nas buscas mais digitadas no Google em 2022, “Como ser padrão?” ficou em terceiro lugar. Mesmo com a individualidade e impermanência sendo umas das poucas certezas que temos, ainda queremos caber na caixa certa, comparar resultados e experiências e duvidar da própria natureza (ou até ir contra ela). Some a isso o fato de que não conversamos abertamente e naturalmente sobre nossa sexualidade, e o resultado é que acabamos transformando comportamentos, desejos e tudo que faz parte da rica experiência humana na versão adulta do monstro que mora debaixo da cama. Queria que as pessoas fossem tão preocupadas em sentir prazer como são em parecerem normais.

Não poderia deixar o ano acabar assinando uma coluna chamada “Prazer Sem Dúvidas” sem discorrer sobre a grande dúvida, a maior de todas. “Eu sou normal?”, vocês sempre me perguntam. Bom, eu não sou nenhuma polícia da normalidade nem me vejo desejando tal título, então, das muitas trocas e estudos e poucas conclusões finais, posso humildemente listar apenas três coisas que realmente não são normais: 1. Sentir dor no canal vaginal durante a penetração (que, apesar de comum, é passível de tratamento). 2. Se sentir ameaçada fisicamente e/ou psicologicamente numa relação. 3. Não respeitar os limites, aproveitar-se de situações de vulnerabilidade do outro ou simplesmente não buscar consentimento em nenhuma interação íntima ou social. De resto, meus queridos leitores, estamos mais tranquilos nesse quesito do que imaginamos. Até as coisas que julgamos “bizarras” dizem mais sobre o nosso preconceito e nossa falta de abertura pras buscas de prazer não convencionais do que qualquer outra coisa. Desde não ter orgasmos apenas com penetração até se excitar vendo a sua esposa com outro homem. Tá tudo certo, mesmo. 

Até as coisas que julgamos “bizarras” dizem mais sobre o nosso preconceito e nossa falta de abertura pras buscas de prazer não convencionais do que qualquer outra coisa.

Até pra nós, que educamos todos os dias outras pessoas sobre o quanto certas respostas fisiológicas, fetiches e vontades fazem parte da natureza humana (complexa e deliciosa que só ela), podemos acabar em alguns momentos tendo que relembrar a nós mesmos que está tudo bem ser como se é. Por exemplo: quando falo que não gosto de mandar ou receber nudes, as pessoas se chocam tanto (principalmente pela minha profissão) que até eu começo a me questionar se está tudo bem comigo. Existe uma fantasia criada de que pessoas que trabalham com sexualidade vão gostar de absolutamente tudo que seja mais picante, e esse é um estigma que simplesmente não condiz com a realidade. Sim, muitos educadores sexuais não se engajam em algumas ou várias atividades eróticas que outras pessoas costumam gostar. Normal. Ao contrário do que muita gente pensa, isso não é puritanismo, da mesma forma que gostar também não é depravação. Essas são escolhas que conseguem florescer apenas onde existe uma consciência muito grande dos desejos e limites. Sexualidade positiva não é gostar de tudo que é kinky. Isso é uma coisa que devemos gravar na cabeça pra ontem. Normal viver e sentir o tesão de uma maneira, assim como normal viver e sentir de outra. O corpo e o desejo de cada ser humano se fundem numa identidade sexual única, que deve ser expressada de maneira livre (desde que consentida e entre adultos), independentemente do cargo ou da aparência de cada um.

Quando falo que não gosto de mandar ou receber nudes, as pessoas se chocam tanto (principalmente pela minha profissão) que até eu começo a me questionar se está tudo bem comigo.

Fico imaginando o quanto nossa vida seria outra se soubéssemos disso desde o início. Quanta repressão e autodepreciação teriam sido evitadas e dado lugar a experiências novas e positivas? E o trabalho não é apenas de normalizar aquilo que já cresce em nós conforme vamos amadurecendo, mas também de conversar sobre. As assimetrias da anatomia, as dobras, saliências e curvas do corpo, a masturbação, não performar como os profissionais do sexo performam, os pêlos, os cheiros, a libido, a falta dela, a vontade de ser dominador ou dominado, ter se relacionado com pouquíssimas pessoas ou com muitas, usar vibrador pra sentir mais prazer mesmo estando num relacionamento, gostar de estimular a próstata mesmo sendo um homem heterossexual, não ter corpo de modelo, ser mulher e pensar muito em sexo, ser homem e não ser uma máquina na cama, fazer barulhos durante os momentos íntimos, sentir desejo em dias ou horários completamente opostos ao da sua parceria, desejar mais de uma pessoa, se interessar pela troca de fotos calientes ou ter completo desinteresse, desenvolver fetiche por partes do corpo, e por aí vai, são coisas tão naturais que não podem morar na culpa ou no medo.

Seria diferente ter escutado que “tudo bem” antes, não seria? Eu mesma não teria encanado com a aparência da minha vulva, que julgava ser anormal por não ser igual a das atrizes de entretenimento adulto, e não teria quase me submetido à uma cirurgia íntima ainda menor de idade. Mas, além do alívio de não ter caído nisso, o que teria sido uma roubada pra mim, a sensação é de “antes tarde do que nunca” quando se trata dos aprendizados sobre sexualidade. Você pode ser uma mulher de 70 anos e ainda sim ir atrás do seu primeiro orgasmo sem problema nenhum. 

Quero terminar essa coluna como quem dá um abraço apertado. Esse foi um ano difícil e não deixaria meus leitores, os novos e os que acompanham desde o primeiro texto, passarem por ele sem entenderem o quanto são especiais nas suas diferenças e banalidades. Saibam: vocês não estão quebrados nem são menos merecedores de afeto e bem estar por serem como são ou desejarem como desejam. E, não, vocês também não estão sozinhos nas preocupações ou “noias” sobre as coisas que não são ditas. Esse ciclo só pode ser quebrado com muito diálogo – coisa que também exige bastante tempo e coragem pra começar a fazer diferença. Seguimos juntos? Mais normais do que julgávamos anteriormente e abertos pra viver um 2023 ainda mais prazeroso e saudável, afinando essa comunicação entre mente e corpo, vencendo os ruídos, as amarras e os monstros debaixo da cama.

Clariana Leal é educadora sexual e carrega como propósito a abertura honesta e inclusiva do diálogo sobre sexo, desejo e corpo. Na sua coluna Prazer sem dúvidas, ela responde mensalmente as dúvidas do público da ELLE.

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