I love America
Estética do sonho americano ganha novas interpretações, algumas delas bizarras, como o tribalismo e a iconografia nacionalista de ultradireita.
Em janeiro falou-se bastante dos Estados Unidos no noticiário. Quase esperado, uma vez que estava marcada para o dia 20 a posse de Joe Biden, um dos momentos mais aguardados. Na verdade, aguardada mesmo era a saída de Donald Trump, um sujeito alaranjado e asqueroso, insuportável de ver, ouvir, lidar com, sobreviver sob. Porém, antes mesmo que a gente aqui colonizadinha pudesse querer parar para ver o ritual dos brancos ricos em ação, uma turba pra lá de bizarra invadiu o Capitólio, incitada, como se sabe, pelo próprio Trump.
As cenas são fortes e marcantes. Fiquei obcecada por aquela gente. Leio tudo o que consigo sobre eles, tentando entender quem são, o que fazem, o que comem, como vivem. Confesso que não conhecia o movimento QAnon, de onde saiu boa parte daquela galera sinistra (literalmente), que desde 2017 está por aí causando, imersa em teorias conspiratórias – uma delas que Trump trava uma guerra (secreta) contra pedófilos adoradores do capeta infiltrados no alto escalão da política, nas empresas e na mídia. Tudo regado a muita fake news, racismo, numerologia e muito fanatismo (nada contra a numerologia, que acredito e sigo!).
Tudo teria começado quando alguém ou alguéns fez uma série de postagens na rede social 4chan, onde os conteúdos são anônimos e efêmeros, seara tanto do Anonymous quanto da extrema-direita. Ali a pessoa dizia que detinha o protocolo Q de segurança máxima. E a mitologia começou, ganhando corpo maior durante a pandemia. A letra Q então batizou o grupo, que lança mão também de vários slogans, como “siga o coelho branco”, “acredite no plano” e o WWG1WGA! (acrônimo para “where we go one we go all”, algo com “onde vai um, vamos todos”), postados ou impressos em camisetas. Parece adolescente mas a parada é séria.
A iconografia americana vem então desdobrada nessa estética, com as cores da bandeira dos Estados Unidos (vermelho, azul e branco), tendo águias e elementos dos povos originários, como peles e acessórios animais, interpretações de um nacionalismo exacerbado, a gente sabe como é.
Você deve ter visto, o maluco cara-pintada que apareceu em tipo todas as matérias sobre a invasão, com chapéu tipo Daniel Boone com chifres meio de viking, sem camisa, tatuado, carregando uma bandeira, chamado (ou autodenominado) de o Shaman da Qanon. Trata-se de Jake Angeli, um ex-mariner de 33 anos do Arizona, habitué de protestos pró-Trump e contra o Black Lives Matter, e naqueles contra as restrições impostas pelo coronavírus. Logo alguém no Twitter o associou ao Space Cowboy do Jamiroquai, que também logo se apressou a dizer que não tem nada a ver com isso não. Aqui no Brasil logo apareceram umas pessoas achando ele “gato” na Internet. Francamente.
Esse estilão entra dentro da corrente de certo “tribalismo masculino”, obviamente misógino, preconceituoso, antissemita, ultradireita, o pacote completo. É o outro lado do sonho americano, esses apoiadores de Trump que, mesmo fora da Casa Branca, mantém sua influência e por sua existência no poder legitimou, autorizou e insuflou essas ideias e essa violência. Da série qualquer semelhança não é mera coincidência.
Daí enquanto começávamos a contar o aumento de casos de Covid por obra dos hedonistas y negacionistas alienados festando desde o Réveillon, ao menos nos divertimos em gritar #foratrump para a TV. Por alguns dias, esquecemos de tudo e ficamos emocionadas com Lady Gaga cantando o hino americano; manjando a família de Biden em looks monocromáticos; felizes por e com a maravilhosidade de Kamala Harris (homenageando as sufragettes); tocados pela jovem e carismática poeta Amanda Gorman – que vestida de amarelo, aos 22 anos, deu ao mundo, por alguns minutos, uma esperança que há muito não víamos. Aqui nos trópicos, vamos de leite condensado, cepa nova e o horror, senhoras e senhores, o horror. Só nos resta mesmo o Big Brother.
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