Sete de Setembro, atenção, alvoroço no setor de coturnos e patentes. Um burburinho mole-mórbido, desprovido, um grunhido quartelar, gargalhada de hiena.
Na TV, a boa ideia de rever o filme Dona Flor. A dos dois maridos, com Jorge Amado por trás das câmeras. Não há como abocanhar toda a riqueza do livro, mas existe um esforço. Sonia Braga, terna, linda, cheia de olhinhos lânguidos, a Flor escritinha encarnada, as duas trabalhando juntinhas. José Wilker, o Vadinho definitivo em cada expressão e, com todo respeito à família e em celebração e homenagem de sua memória, mas que delícia, que ator.
Filme feito e lançado durante a ditadura que tanto querem refazer. Fonte d’água no sol contra o Eau de Desinfetante das salas e porões de tortura. Calor, calor, calor. Moqueca de siri mole, seiva de lavanda e o laranja do licor de araçá. Jorge Amado sabia das coisas, das boas e das melhores.
Ele quis dar a sua Flor o impossível. E foi assim que fez dentro das circunstâncias de sua escrita e criação.
A alegria extrema de um amor que se diz no sexo e com ele. O casamento ali são outros quinhentos, contar vintém, vil metal, dólar furado. Nem sempre, mas convenhamos que isso também.
Vadinho morre, feliz, rápido e risonho, num exagero, excitação, é Carnaval, o protegido de Exu vive com alegria e com alegria se vai.
Passado o luto, a viúva se casa de novo. Não sem antes pronunciar uma das frases mais lindas e significativas sobre perder um amor: “Ai, nunca mais seus lábios, sua língua, nunca mais sua ardida boca de cebola crua!”. Está aí uma tonelada de psicanálise e um concentrado de vida capaz de muita coisa.
Tudo o que ela dizia querer e sonhar aparece. Um cara certinho, ajuizado, trabalhador, bem-sucedido carinhoso e respeitador ao seu entendimento. O farmacêutico, seu remédio. Mas, ai, que só trepa quietinho de pijama e não vê muito valor na variedade da cozinha. Vai se mostrando mala, machistinha suave, com tendência a senhor proprietário. Dr. Purgante, melhor apelido.
Só que tudo dói e nada adianta. Picada de amor, onde bate etc, fica a memória daquela rima, aqui desconstruída, mas que vocês mesmo assim reconhecem.
Flor chama seu morto. Usa o colar que ganhou dele depois de uma noite de treta, baixaria e serenata. Confessa ao padre que deveria estar feliz, mas vejam só… E o padre, daqueles meio analista, não indiferente ao prazer dos proibidos, em vez de condenar diz que isso de felicidade é um negócio chato mesmo, monótono.
Vadinho volta. Pelado em todo seu esplendor, só Flor pode vê-lo. Esqueçam aquilo de Ghost. Ela pode senti-lo, pegar nele, beijar, abraçar. Na mesa de Jorge Amado é sem miséria pra ela nesse ponto.
Jorge dá um jeito pra Flor ficar com os dois. Mulher do homem de negócios pela segurança burguesa e amante do malandro, que, na real, era com quem dividia e multiplicava o tesão de viver. Sim, mil questões problemáticas para além do sobrenatural, eu sei.
Não quero discutir o que Flor poderia em outro mundo, outro autor. Isso seria fácil e roubar no jogo. Precisaríamos de outro livro, que é bom que se escreva. Mas ainda assim, com esse que temos e que virou filme tão gostoso numa época de tanto horror, tanto engulho, dá pra pensar muita coisa.
Hoje sexo é ainda na língua pálida e azulada do P: procriação, pornografia padrãozinho, pacto matrimonial, piada de macho leite condensado na lata.
Mas na língua de Flor e Vadinho sexo cria.
Não outras pessoas, porque ela não pode ter filhos. Ele não liga, ele se liga nela. E eles transam em vermelho porque, enfim, é quente . Quem discordar que escreva a Bruno Barreto, que gravou essa cena porreta de linda. Eles criam vida, é isso que eles criam, prazer sim, mas não só, vontade de viver. Eles se aceitam num lugar misterioso, incômodo.
A mãe amorosa do filme é a prostituta que Flor confunde com amante de Vadinho. Desfeito o engano, viram comadres, Flor de madrinha do recém-nascido da amiga. Já a mãe de Flor é daquelas. Jamais ouve a filha, amarga, invejosa, só pensa em grana e status, quer o kit completo, os 100% de lucro. Tem também a vizinha, a amiga Norma, que apesar do nome dá carinho a Flor e cuida dela sem impor tanta bobagem.
É na comunidade que está o calor de tudo. Seja a das fofoqueiras, dos bebuns jogadores, da vizinhança, das alunas de Flor, do padre pouco careta e seus anjos de olhar vidrado. Moqueca não é prato que se come só. O que não quer dizer que não haja espaço para o gosto de cada um. O preferido de Vadinho, pra além do siri, é mel com pimenta, por exemplo. Isso é o que ele prova nela. Uma trama que passa pelo coletivo à sua maneira. Uma coisa emprestando quentura à outra, em suculenta comunhão.
Claro que estou aqui ignorando coisas, aumentando outras, não mexo só com o domínio dos fatos no sentido mais comum. É assim que lemos, que vivemos, o mundo nos permite e, mais, a própria realidade é feita também de ficções e edições. A questão é o que se faz delas como são montadas e com qual propósito.
O meu era falar de amor, sexo, tesão, erotismo e quitute em pleno reinado da motoserra, do tanque enferrujado, da epidemia de vírus e de fome. Falar disso que me deu vendo Dona Flor.
E como tudo isso me lembrou o texto de uma mulher que, como eu e multidões, gostava do amor.
A amorosa marxista russa Alexandra Kollontai pensou muito nisso, construiu uma obra em boa parte dedicada ao amor. E questionou como isso seria em diferentes situações. Fez os livros dela.
“Abram caminho para o Eros Alado”, é um dos textos dela. Por aí se acha, em aberto e gratuito pdf, a tradução que uso aqui.
Eros, sabemos, aquele Amor dos gregos. Bonitaço, às vezes representado na sua fase menino. Cheio das flechas, causador. Vem com asas de fábrica. Mas, e Alexandra faz um tour histórico para explicar isso, tem suas asas cortadas muitas vezes.
Ela volta aos modos de produção, vai falar do feudalismo, da formação da família camponesa, da família burguesa. Vai procurando cortes, esconderijos. Mas, no fim, são asas que resistem bastante, que voltam, rebrotam. Não digo que sejam indestrutíveis porque não depende só delas. E muitos de nós estão cansados, tristes, sozinhos, traumatizados, tudo isso demais, para lidar com esse cultivo do amor.
Para tempos fáceis ou difíceis ela fala do amor-camarada, do amor camaradagem, “fundamentado na solidariedade de espírito e da vontade de todos os membros, na colaboração e no trabalho”. Se isso é anti-Eros, corta-brisa de asa? Ela responde. “Muito pelo contrário. Ou seja, como força social e psíquica, prepara o reconhecimento do sentimento de amor.”
Eu vivo concordando e discordando da Alexandra, porque, enfim, esse também é o trabalho. Ela morreu em 1952, esse texto é dos anos 1920. Relevante porque brilha, mas não porque é perfeito, relevante porque contém pontos de renascimento.
Peguem essa, abram bem as mãos: “A moral hipócrita da cultura burguesa, que obrigava ao deus Eros não visitar mais que o ‘casal unido legalmente [aqui podemos pensar os padrões como leis num sentido mais amplo?]’, arrancava-lhe sem piedade as plumas mais belas de suas asas de cores brilhantes”. Alexandra, carnavalesca.
Vamos mais um pouquinho? “O ‘Eros sem asas’ empobrece a alma, porque impede o desenvolvimento de sensações de simpatia e de laços psíquicos entre os seres humanos. Em terceiro lugar, este amor tem por base a desigualdade de direitos entre os sexos e as relações sexuais; isto é, está fundado na dependência da mulher em relação ao homem, na insenbilidade ou fatuidade do homem; tudo isso necessariamente sufoca qualquer possibilidade de experimentar um sentimento de camaradagem. Por outro lado, a ação exercida sobre os seres humanos pelo ‘Eros de asas abertas’ é completamente diferente.”
Teóricos de toda parte afirmam que o mundo capitalista e seu sucesso baseado em exploração humana produz modos de sofrimento específicos e cria mecanismos crueis e destruidores para gerir e se alimentar desse sofrimento. Disso vem parte das teses de Alexandra, ou seja, de que essas mesmas condições colonizam e aprisionam, guiam de maneira violenta, nossas formas de relacionamento. Amizades, casamentos, encontros.
O Amor está para ela na solução e na causa revolucionária. “O indiscutível é que quanto mais unida estiver a humanidade pelos laços duradouros da solidariedade, mais unida intimamente estará em todos os aspectos da vida, das relações mútuas ou da criação.” Ou seja, o amor solidário de expressão coletiva como força recriadora do próprio amor em cada pessoa.
Amor no pvt mas também como essa união no sentido social, da igualdade de direitos, do combate ao racismo, à miséria. Altas transas misteriosas, vontade de saber o que pode vir depois.
Sete de Setembro. Um clima de morte, de libido sufocada. Penso nos beijos de Flor e Vadinho, penso na Alexandra chamando o futuro, penso em Freud receitando amor contra a doença. Decido que sigo o padre da história e não quero mais saber de felicidade. Peço que no lugar de novas farsas sufocantes de independência Exu nos devolva a alegria dos caminhos. Abertos e cheios de graça feito as asas de Eros quando veem a cor da rua.
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