Amizades incompatíveis e aquilo que podemos ser

Quando também tomamos consciência de que cada um responde por si, estamos livres para escolher. Mesmo que essa escolha seja se afastar.


coluna jarid arraes. fim de amizade
Ilustração: Mariana Baptista



“Você inventa que tem doença, tudo é depressão.”Enquanto eu escutava o áudio tocar no W hatsapp, sentia o choro me engasgar no meio do bar. Era uma das pessoas que eu mais amava e confiava no mundo, que, como uma garotinha andando pelo pátio da escola de braços dados com outra, eu considerava minha “melhor amiga”. Alguém que sabia dos meus desafios e das consequências que eles traziam, um deles os periódicos isolamentos e a dificuldade de ser uma amiga totalmente presente, sobretudo pela internet. Isso, que eu considerava uma falha terrível, tinha que dividir espaço com a constante presença online para manter a divulgação do meu trabalho.

Quando eu entrava nos períodos mais eremíticos, pedia desculpas por não trocar mensagens como parte da rotina da amizade, e canalizava todos os fiapos de energia em manter meu trabalho, que dependia dessas migalhinhas online para continuar sendo visto. O desejo era de sair pelos vales com meu cajado e minha lamparina, mas eu tinha obrigações. Para minha melhor amiga, uma delas era responder mensagens sem muita demora.

Estou, claro, simplificando uma realidade que, como um prisma, refracta a luz. Mas eu quero falar sobre incompatibilidade.

Mesmo depois desse acontecimento e da gravidade das coisas que foram faladas por minha amiga, por alguns anos eu sentia que tinha alguma culpa pelas palavras absurdas que me foram ditas. No entanto, apesar da mágoa, sempre pude enxergar que ali existia um problema-raiz que condenava a amizade a ser como era – e poucas coisas são tão dolorosas quanto não poder tocar na falha e transformá-la no que, você sabe, seria uma versão um pouco melhor da realidade. A amizade desequilibrada, em que uma parte desejava da outra algo que, era evidente, não estaria lá, só tinha duas saídas: aceitar suas mudanças de ciclos, sua fertilidade e seu recolhimento, ou cravar as unhas no tronco para arrancá-la de uma vez. Numa noite, enquanto ouvia a voz registrada no celular me dizer que eu era uma pessoa ruim e que não tinha que ser minha mãe, eu via que, sem chance de salvação, estavam mortos todos os simbolismos e toda a concretude de uma amizade muito querida.

Ainda é difícil pensar que alguém com tamanha importância para mim foi tão cruel. Eu sempre achei – e ainda penso assim – que uma coisa é não conseguir lidar com alguém que tem algum tipo de transtorno mental, sempre achei que uma coisa é não ter obrigação de lidar, porque, é até melhor assim, removendo responsáveis por menores, pouca gente tem. Mas outra coisa é transformar o sofrimento do outro em uma arma que será usada para causar ainda mais buracos.

Conhecendo a história em seus mínimos detalhes, alguém pode dizer que a outra parte explodiu porque era difícil projetar em mim certas coisas, esperar que essas coisas viessem (não éramos melhores amigas, poxa?) e sobrar com a decepção. Mas, depois de alguns anos dando replay nos fatos e experimentando padrões parecidos, hoje sei que as projeções dos outros não são minhas responsabilidades. E a melhor parte disso é que os outros, quando também tomam consciência de que cada um responde por si, estão livres para escolher. Mesmo que essa escolha seja se afastar, porque poucas vezes a insistência pode superar a incompatibilidade.

“Nem sempre serei a amiga das figurinhas da Gretchen que fluem pela tela, nem sempre eu vou ter energia para mais do que fazer mais do que o meu trabalho.”

E você pode pensar que eu soube disso há vários anos, que depois do que aconteceu eu me tornei vacinada, escaldada e precavida. Mas não. Há poucos meses eu ainda pedia desculpas por não ser a projeção de amiga que eu queria tanto refletir. Eu queria ser o que a outra pessoa queria que eu fosse. Eu digitava seriamente um “desculpe, vou tentar responder tudo e fazer isso do jeito certo”, como se meu afeto pudesse ser avaliado pela presença online mais do que pela confiança, confidência, mais do que pelos momentos na vida física, na vida do tato, do abraço e da risada, mais do que tudo que foi compartilhado olho no olho. E, claro, eu sei que a realidade não é assim dicotômica, que já não separamos os aplicativos de uma mesinha de boteco, mas essa é uma limitação que tenho, que existe, e nem sempre serei a amiga das figurinhas da Gretchen que fluem pela tela, nem sempre eu vou ter energia para mais do que fazer mais do que o meu trabalho.

E isso é difícil de ser compreendido, também sei, porque hoje o trabalho e a amiga se confundem. A artista que tenta manter o engajamento, que se esforça para falar sobre sua criação, que todos os
dias tenta decifrar o que pode ser inventado para não ser soterrada pela invisibilidade que os algoritmos usam como punição, essa artista pode até parecer a mesma exatíssima pessoa que você chama de amiga. Mas, garanto, nem sempre é.

“Enquanto escrevia ‘ser uma amiga melhor’ na minha listinha de ano novo, fui pega por um insight: uma amiga melhor para quem?”

Acho que a reflexão sobre amizades num mundo em que vivemos tanto pelos aplicativos e redes sociais merece aprofundamento. Mas sabe o que também merece atenção? O fato de que, às vezes, pessoas não são compatíveis. Expectativas não são supridas. O que o outro consegue te dar não é suficiente. E isso poderia ser um nó menos difícil de desatar, se tão somente entendêssemos que podemos não ser amigos, podemos ter uma relação de respeito e cordialidade, podemos ter ligações profissionais, podemos até dividir uma mesa entre outras pessoas, mas a divisória será traçada, os sentimentos e as expectativas serão calibrados e as projeções serão reconhecidas como tais.

Há alguns meses, pensando no que desejava para minha vida em 2023, eu finalmente entendi que algumas amizades não sobrevivem aos testes das incompatibilidades. Enquanto escrevia “ser uma amiga melhor” na minha listinha de ano novo, fui pega por um insight: uma amiga melhor para quem? Tudo bem que fulano reclama que pareço distante na internet, mas tem essa outra pessoa aqui que me acha suficiente, que me aceita como sou. E fazemos piada disso.

Uma amiga melhor, afinal, eu preciso ser para mim mesma. Preciso ser generosa comigo mesma, preciso ser um pouco mais compreensiva, olhar com carinho para quem sou, e aceitar, uma vez
aqui e outra ali, que não serei o bastante para alguém. Mas quero ser o bastante para mim.

Nos meus desejos para 2023 não estão mais palavras que me prendem numa rodinha de hamster, eu não quero mais perseguir uma face que não é a minha. Eu quero ser a melhor versão de mim que é possível. A possível.

Nascida em Juazeiro do Norte, na região do Cariri (CE), em 12 de Fevereiro de 1991, Jarid Arraes é escritora, cordelista, poeta e autora do premiado Redemoinho em dia quente, vencedor do Prêmio Biblioteca Nacional, do APCA de Literatura na Categoria Contos e finalista do Prêmio Jabuti. Jarid também é autora dos livros Um buraco com meu nome, As Lendas de Dandara e Heroínas Negras Brasileiras em 15 cordéis. Atualmente vive em São Paulo (SP), onde criou o Clube da Escrita Para Mulheres e tem mais de 70 títulos publicados em Literatura de Cordel.

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