Agora todo mundo é influencer?

Há dias em que me sinto exaurida. Quero postar um poema sem pensar em engajamento, algoritmos, compartilhamentos. Só literatura. Meu trabalho, minha arte. Que não é ser "influencer".


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Ilustração: Gustavo Balducci



Encaro a tela do celular enquanto sinto meus olhos secarem. Eu não sei o que fazer. Não tenho fotos novas, esgotei o estoque de momentos fofos dos meus pets, acho tudo desinteressante, não tenho nada para compartilhar. Mas tenho que compartilhar. Postar, promover, esperar engajamento.

Quando foi que virei “influenciadora”?

Como escritora, preciso das redes sociais para divulgar meus livros, eventos e outros trabalhos literários. Foi assim desde o começo, quando eu ainda era uma autora independente e dependia somente de mim para vender um livro por vez usando as redes sociais como plataforma. Foi graças à minha habilidade com as redes sociais que consegui fazer esgotar um livro de estreia que nunca esteve em qualquer tipo de livraria ou loja. Sozinha, eu lutava bravamente para registrar pagamentos, fazer envios pelos correios e manter as redes sociais ativas, sempre alternando entre pedaços de mim e a divulgação literária. Alguns bons anos depois, me vejo na mesma situação. Não importa se estou numa das maiores editoras do país e meus livros estão em muitas livrarias, eu ainda tenho que divulgá-los, fazer fotos bonitas com suas capas em evidência, compartilhar trechos que as pessoas possam achar interessantes. Muito mudou e pouco mudou. Eu preciso ter presença online.

Mas não qualquer presença. Ela tem que vir com recortes da minha vida, que nem sempre quero mostrar. Tem que vir com o dia a dia, que nem sempre é mais do que um notebook no colo. Tem que ter a postura de quem precisa do Instagram para ser alguém no mundo. Porque parece, muito sinceramente, que se você não vira uma espécie de marca, você não existe.

Há dias em que me sinto exaurida. Eu quero postar os livros que leio no tempo que leio, às vezes deixando que descansem na cabeceira da cama, sem prazo para terminar. Sempre a pressa da produção de conteúdo. Eu quero postar um poema sem pensar em engajamento, algoritmos, compartilhamentos. Só literatura. Meu trabalho, minha arte. Que não é ser “influencer”.

Reconheço que muitas pessoas esperam de mim um certo tipo de ação influenciadora. Querem saber o que estou lendo porque confiam nas minhas indicações; querem ver o que estou comendo, porque se interessam pelos gostos de quem elas gostam; querem saber como é a rotina de quem escreve (spoiler: é um porre) e querem se sentir próximas. Eu também quero me sentir mais próxima das pessoas que leio, gosto e admiro. Eu também espero que elas me mostrem um retrato bem enquadrado de suas vidas. Mas será que a gente aguenta?

Ultimamente muitas das minhas amigas, escritoras ou não, estão reclamando das redes sociais. Para elas também a coisa toda se parece com funções acumuladas. Quem inventou que psicólogo precisa produzir conteúdo pra rede social? Quando foi que o trabalho de criar arte virou também o de criar um feed estimulante, cheio de vídeos fazendo dancinhas e apontando para palavras flutuando na tela? Nada contra dancinhas, tenho amigas que dançam. Mas eu não quero.

E as redes me punem por não querer e não fazer, limitando o alcance do que mais me importa que chegue até outros dispositivos. Meus livros, os contos publicados em antologias, essa coluna que você está lendo agora. Porque não entro nas novas tendências métricas calculadas automaticamente manipuladas das redes, sou punida por elas. Parece que estou num relacionamento abusivo com meu Instagram? Parece que assinei um contrato sem ler e agora estou encarando as consequências.

Porque não entro nas novas tendências métricas calculadas automaticamente manipuladas das redes, sou punida por elas. Parece que estou num relacionamento abusivo com meu Instagram? Parece que assinei um contrato sem ler e agora estou encarando as consequências.

E por mais que eu ame estar em contato com quem me lê – eu realmente amo a aproximação com os leitores – eu também preciso fazer as coisas com paciência. Divulgar livros que li, com paciência. Indicar obras listadas, com muita paciência. Quero ter uma presença online que reflete aquilo que desejo para minha vida, não o que o contexto atual demanda de todos os profissionais, especialmente os liberais. Eu não sei ser “influencer”, eu só sei ser escritora.

Adianta pouco escrever um texto como este se não mudamos nossa percepção e aceitação desse fenômeno. Somos parte de uma trama muito bem entrelaçada e somos consumidos pelo que consumimos. Muita gente tem “recebidos pagos” (como se em algum momento existissem “recebidos gratuitos”) e “para quem perguntou onde comprei” (uma pessoa perguntou). Um comportamento viciado que também é uma expectativa mordendo a própria cauda. Uma emulação do que é ser um influenciador, um criador de conteúdo, um profissional, e não alguém que gosta de fotos do almoço e imagens de gatos bocejando. Será que todos nós queremos ser e temos que ser influenciadores?

Eu sou culpada de ser a pior influenciadora que consigo ser. Estou nesse lugar que é e não é uma posição estabelecida. Uma oscilação que enjoa como uma montanha-russa em funcionamento eterno.

O que mais apita como alarme na minha cabeça é a preocupação de que a saúde mental pode sofrer com esse jogo algorítmico. Até que ponto aguentamos fazer a curadoria da nossa vida, trabalhar para que nosso conteúdo sério seja visto por quem se interessaria por ele, acompanhar os números de seguidores subindo – ou descendo – e não entrar num verdadeiro “burn out” de redes sociais?

Nascida em Juazeiro do Norte, na região do Cariri (CE), em 12 de Fevereiro de 1991, Jarid Arraes é escritora, cordelista, poeta e autora do premiado “Redemoinho em dia quente”, vencedor do Prêmio Biblioteca Nacional, do APCA de Literatura na Categoria Contos e finalista do Prêmio Jabuti. Jarid também é autora dos livros “Um buraco com meu nome”, “As Lendas de Dandara” e “Heroínas Negras Brasileiras em 15 cordéis”. Atualmente vive em São Paulo (SP), onde criou o Clube da Escrita Para Mulheres e tem mais de 70 títulos publicados em Literatura de Cordel.

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