Luxo, consumo e extinção

Sobre moda, negacionismo e a história do "povo borboleta".


origin 846



Overconsumption = Extinction. Consumo excessivo = Extinção. Manifestantes invadiram a passarela da Louis Vuitton na semana passada, um deles segurando faixa que dizia isso. Os seguranças entraram em ação como em tantos outros protestos. A primeira fila, em sua habitual anestesia, mal buscou forças para empunhar os celulares de última geração. Muitos sem máscara para melhor respirar a atmosfera tóxica do “novo normal”.

O cartaz não mente. A moda segue como a segunda indústria mais poluente do mundo, e o nicho do luxo está implicado nisso em diversos pontos.

Não porque o luxo seja em si ruim ou fútil, de fato não é. Nós, as pessoas, nós que falamos e criamos história, gostamos e em certa medida precisamos dos nossos supérfluos. Exceto talvez os espíritos com ambições santas (e mesmo aí há uma certa ideia de excesso e luxo póstumo, já que não se vê na arte nem nos templos representações de deuses miseráveis nem de céus pobres), ninguém quer passar a vida a pão e água. Que os luxos e o tipo de inutilidades fascinantes variem entre culturas é algo que certamente podemos reivindicar. O que nos leva a um ponto: podemos argumentar que existe uma tentativa de pasteurizar isso, de criar um luxo que funcione pra qualquer um em qualquer lugar, o que envolve muito dinheiro, captura de talentos, apagamentos e uma estratégia complexa de marketing cultural. E isso só para começar.

Mas podemos pensar em outra questão relacionada. Ela passa pelo modo de produção, por como o consumo se organiza na sociedade capitalista e como isso se relaciona com o laço social. O excesso vira concentração (de renda, de bens, de acesso, de poder determinar o que é chic, o que é bonito), a distribuição não pode ser separada do desperdício e o resto que vira descarte cresce absurdamente.

O volume de lixo, seja como parte da produção ou como coisa usada e jogada fora, é tão alto que nos permite dizer que o objetivo principal do mercado de moda hoje não é atender a demandas de consumo, mas manter ativo o mecanismo de fazer para descartar. Todo o restante, incluindo desfiles, tendências etc, seria secundário, algo feito para ser a cara dessa coroa.

Relatório de 2018 do IPCC — autoridade científica global sobre mudança climática — alertou que o mundo só tem até 2030 para evitar que o planeta alcance o limiar do aquecimento global. Isso quer dizer que uma vez isso ultrapassado, a previsão é de secas extremas, incêndios, inundações e falta de comida. Nesta semana, até mesmo a ONU e sua notável lentidão em sequer dizer o mínimo, divulgou que já está em curso algo que só pode ser definido como catástrofe. Que isso venha sendo usado apenas como ferramenta de gestão do medo, sem a menor intenção de de fato modificar o sistema, é algo que deve ser levado muito a sério.

Em 2019, a ativista Greta Thunberg, então com 16 anos, levantou essa bola desafiando os líderes mundiais e os bundões da ONU, acusando-os de mentir e rifar o futuro. Na ocasião, Bernard Arnault, dono do conglomerado de luxo LVMH e com uma fortuna estimada em US$ 100 bilhões, foi questionado sobre a fala de Greta e não quis entrar no debate. Preferiu desqualificar a adolescente. Seguem as palavras dele: “acho que suas opiniões são desmoralizadoras para os jovens. Ela é uma jovem expressiva, mas está se rendendo completamente ao catastrofismo”.

Dois anos depois, mas com atraso muito maior, todas as autoridades reconhecidas possíveis não só dão razão ao que Greta dizia como aumentam o grau das palavras. Faz pensar que o negacionismo, longe de ser um efeito pontual, uma aberração, uma “doença” manifestada apenas nos grupos mais ignorantes, é na verdade essencial à manutenção do sistema em um nível de base. Que ele alcance níveis caricaturais mortíferos, como no caso de Jair Bolsonaro, é apenas consequência disso.

Consumo excessivo = Extinção. “Será que o que já desmatamos não dá pra tocar essa merda de país?”, pergunta Jair. Não Bolsonaro, Jair Candor, um servidor público comprometido com seu trabalho, sobrevivente nos escombros da Funai.

A frase está no excelente documentário Piripkura, agora disponível na plataforma de filmes Mubi Brasil. De 2017, o filme dá conta do encontro com dois indígenas nômades, os últimos sobreviventes de seu povo. A terra onde vivem, cada vez mais cercada por fazendeiros e madeireiros, depende de uma portaria para se manter livre dos invasores. E essa portaria só se sustenta caso haja Piripkuras vivendo naquela terra. Aí entra Jair. Cabe a ele trazer provas de vida, de que os dois seguem vivos na mata fechada.

Jair, com a ajuda de Rita, irmã de um e tia do outro sobrevivente, faz suas incursões. Rita saiu do território para fugir da matança. Foi feita escrava em uma fazenda local e depois de libertada resolveu sair dali. Ela conta das mortes dos parentes assassinados. De como uma parenta e seu bebê de colo foram degolados a facão pelos jagunços dos senhores de terra.

O povo foi caçado ali desde 1800 e na década de 1940 começou a chegada de colonizadores ocupando e se estabelecendo no território. Nos anos 1960, o discurso de que “índio era bicho” estava mais do que consolidado. Um discurso, irônica mas não estranhamente, próximo daquele romantismo barato que atribiu ao índio a ” pureza” dos animais, da natureza. E Jair completa. Sendo assim, quem entrasse na mata e matasse famílias ou povos inteiros nada sofreria, não haveria penalidade. Afinal, estariam ajudando o país, já que aqueles “bichos atrasados” representavam um peso. De noite os jagunços cortavam os arcos, depois botavam fogo nas malocas. Quando saíam para não ser queimados, os indígenas eram abatidos a bala. Ou, no caso dos que tinham mais mobilidade, como os Piripkura, eram caçados dia e noite. Desse jeito.

A aparição dos Piripkura no filme é algo que impacta aqueles que não estão mortos por dentro. Eles aparecem totalmente pelados, com uma única ferramenta de madeira, senhores de seus passos. Estão fortes e saudáveis. Jair se espanta, mesmo depois de tantos anos, com o quão pouco eles precisam carregar. Que medo temos nós, os brancos “floco de neve”, de tamanha presença, nós, olhando com nossa pretensa superioridade, tosca, mal disfarçada, anêmica e impotente. Não são doces e inocentes, não são atrasados, se mostram dignos, inteligentes, habilidosos, bem-humorados. Uma gente capaz de fazer sua vida. Se eles gostariam de outras coisas é outra questão, que poderia ser posta em outras condições. Se estivessem de posse plena de suas terras, se pudessem contar com sua comunidade brutalmente exterminada.

Seus luxos, são, de fato, bem outros. Os Piripkura são conhecidos, por exemplo, como apreciadores de mel, tendo uma catalogação oral impressionante sobre diferentes tipos de abelhas. Mas mesmo isso é uma visão colonizada. Precisaríamos de mais interesse em conhecê-los para sabermos de seus excessos, do que fazem por inútil ou supérflua delícia.

Os conhecimentos ecológicos do Piripkura são estudados no mundo todo. Inclusive nas melhores universidades de Paris, imagem maior do luxo. Sua língua própria, uma variação do tronco tupi do tupi-guarani, também é de grande interesse em diversos centros de estudo. Arriscamos um francês de boa, mas somos privados como país da língua que primeiro aqui se formou.

A portaria que protege as terras Piripkura no Mato Grosso venceu em setembro deste ano, mês passado. Foi renovada por apenas seis meses, o que é visto pelas organizações indígenas um claro sinal de afrouxamento. Afinal, há urgência em desmatar uma área de floresta riquíssima para abrir espaço para a mineração e depois fazer pasto. E isso segue a mesma lógica do descarte, sendo o minério e os bois uma explicação econômica baseada em coisas. Mas o que importa é movimentar a máquina de destruição, coisa mais difícil de justificar.

O corte de 96% no orçamento do Censo Demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) foi feito sob medida também para isso, dar sequência ao genocídio. Bolsonaro vem fazendo falas de desprezo aos indígenas desde 1998, a favor da retirada de suas terras, dizendo que eles “não tem cultura” e que muitos deles estão “cada vez mais humanos”, entre outras barbaridades. O que não impediu que ele vencesse a eleição nem o silêncio da elite brasileira, que segue sendo ouvido nas casas e mesas mais insuspeitas.

Mas para tudo há a mesma resposta. O desenvolvimento, o mercado, o capital. Bolsonaro nada pode, nenhum líder nada pode, os pobres ultratrilhardários nada podem. Estão sendo “objetivos” como bons liberais a favor do “progresso”. O nome dessa violência é sistêmica mas também, como nomeia o filósofo político e psiquiatra Frantz Fanon se referindo ao racismo, violência atmosférica.

Respiramos o inimigo mas essa violência está focada em dizer que não podemos apontá-lo. As coisas “sempre foram assim” ou “não tem outro jeito” são alguns dos nomes desse jogo. Vamos criar um “capitalismo com valores humanos” é outro. E dão todos no mesmo. Vale lembrar que mesmo na tão incensada Europa os direitos sociais e o que resta do Estado de Bem-Estar Social não estão aumentando, mas sendo cada vez mais destruídos por políticas de austeridade. Como diz o meme, o golpe tá aí…

Os nomes dos Piripkura sobreviventes, cuja vida está ligada à memória daquela terra e de todo um povo, são Baita e Tamandua. Em seu idioma há nomes, há eu, mas o que entendemos como o verbo ser, e mesmo estar, não está exatamente presente. É uma característica do tupi, pelo pouquíssimo, pelo grão do que pude aprender até agora. Estudos das línguas indígenas do país dão conta de uma riqueza metafórica muito grande. Tantas possibilidades.

A identidade dos Piripkura, segundo consta, tem a ver com o conjunto, com ações. O próprio nome do povo teria sido dado a partir de sua convivência com seus vizinhos, o povo Gavião (provavelmente os Ikoleng, do povo Mondé, da divisa do MT com Rondônia). Quer dizer povo “borboleta” (ou mariposa), o que teria a ver com o nomadismo e com sua rapidez e leveza para saírem de um lugar a outro. Penso eu nesse povo que vai pela mata, pousando com mínimo rastro aqui e ali, polinizando seus aprendizados, curtidores do néctar das coisas, das em volta, talvez de outras.

Não quero fazer aqui uma dessas coisas babacas de dizer “somos ou sejamos todos Piripkura” porque não somos, nunca seremos e deveríamos pensar seriamente no papel que temos na continuidade da história que até agora tratou de exterminá-los. E ademais tenho milhares de restrições a essa bobagem lifestyle disfarçada de “retorno à natureza”, bucolismos do privilégio e outras cascatas.

Mas advogo aqui por um novo encontro. Um que se interesse pelo outro, não só em descobri-lo, mas em ser descoberto por ele. Ouvir também é se descobrir em relação ao outro. Isso faz parte da luta para o fim do apartheid que vivemos, que é racial e social, ou seja, extermina por raça e por classe numa trama dupla de exclusão.

Penso no efeito borboleta, aquele que não é bem isso, mas se popularizou na história de que o bater de asas de uma delas poderia causar um furacão.

Em uma nova realidade tida agora como impossível, e por isso mesmo válida, a classe trabalhadora se cansa de ouvir lorotas sobre capitalismo humanitário e abre cada vez mais espaço para pensadores, intelectuais e saberes das diásporas e dos povos originários em busca não de “incluir” a partir de uma posição de superioridade, mas de construir em conjunto um furacão, uma nova possibilidade de laço social comum que possa nos tirar desse pasto infernal.

Para ler conteúdos exclusivos e multimídia, assine a ELLE View, nossa revista digital mensal para assinantes