Ensaio sobre a memória

Mil obras e uma tarde nos subsolos do acervo do Masp


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O museu é um atualizador de memórias. Pode ser uma definição, ainda que não definitiva. Nos escondidos do museu estão obras não expostas, talvez esperando sua vez de voltar ao fluxo das coisas do movimento, talvez fadadas a uma existência quase secreta, restrita a alguns pares de olhos. No aberto estão as mostras, aquilo que alguém escolhe para que seja apresentado ao público, dito, ouvido, analisado, olhado, gravado, conjugação algo particular do verbo curar.

Em visita aos subsolos do Masp, fortaleza escondida do acervo guardado, observo o trabalho da equipe de conservação. Ainda que os olhares sejam sempre novos, há grande preocupação de que as peças sigam as mesmas, ou ao menos o mais parecidas consigo mesmas possível. Seguindo intactas o quanto puderem seguir, talvez sejam base de referência à mudança do que sobre elas ou a partir delas se diz e se faz. É um jeito de organizar.

De um grande armário giratório revelam-se gavetões, e neles amplas caixas como as de marcas de luxo, ares de closet minimalista de séries de TV. Lá dentro roupas feitas para corpos ou para suportes outros, roupas que já viram pele, batons e cigarros, mas que agora precisam até mesmo evitar a luz se quiserem cumprir seu papel de presença eternizada.

Qualquer botão metálico é um problema com seu peso, suas marcas, é preciso deitá-los e isolá-los de tal forma que não façam o que de fato farão. A equipe de conservação tem olhos atentos a certa compreensão da memória, são um pouco feito uma mãe previdente e superprotetora, sempre antecipando pequenas catástrofes. No caso desses profissionais, o cuidado extra é mesmo muito necessário.

Mostra-se sobre a mesa uma peça de roupa que faz ver um patuá de vestir, uma dessas túnicas rituais cheias de traços do mundo, com seus dentes, olhos gregos e lacres de cerveja em lata. A equipe fotografa o inteiro e o pedaço-por-pedaço a fim de poder reproduzir parcialidades eventualmente perdidas. Na verdade estão todos certos de que, uma vez que a peça venha à luz, algo dos seus excessos fatalmente cairá. É um destino, talvez dos poucos que mereçam tal palavra. Repor não é descair, trocar não é apagar definitivamente a marca de uma existência. Há um lugar em que a presença da linha pode conviver com a ausência da linha sem que elas se anulem.

A memória tem a capacidade de registrar o que não foi dito nem escrito. Fala também pelas faltas, pelos rasgos e furos. Como dizia Lélia Gonzalez, a memória fala pelas mancadas do discurso da consciência e contraria histórias estabelecidas, é uma desbravadora de encobrimentos, guarda prints de tela capazes de cada coisa.

Passo por alguns cavalinhos de Degas desembrulhados enquanto colegas examinam uma armadura antiga ao lado de outras peças muito desconexas entre si, estranho Carnaval em bloco. Embaixo de larga prateleira, enrolado em alguma coisa plástica, jaz um Cristo sem braços com olhos expressivos. Aquela expressão indefinível dos olhos dos cristos, vista desse ângulo, me faz pensar que por ali também se escapa. Cada um faz como pode.

Algumas obras, as vemos envelhecer em público, sobretudo murais e estátuas abandonadas pelo poder, sejam deuses e figuras históricas, seja o chafariz secular do poema que aprendi ainda adolescente, com seus leões dormindo em ruína, cercados de musgo. Em tudo há fantasmas, mas no museu a aparição vem com todas as suas carnes assustadoríssimas no lugar, como corpo estranho, como estranhado.

As obras mais jovens, com autores vivos, talvez ainda sejam cheirosas o bastante com tons do agora, talvez tenham alguma marca mais ou menos definida que diga, sim, ainda hoje. Mas as antigas, aquelas repetidas em cadernos e fundos de prato, aquelas que parecem nunca ter existido além de suas reproduções, essas são especialmente assustadoras no match de museu.

Diante delas instala-se um silêncio constrangedor que talvez diga em segredo, hey, não pode ser. Talvez não haja nada mesmo a dizer e seja essa a coisa. Para alguns, não sei ao certo se os mais ou menos sensíveis, há um desejo de encostar, driblando a regra máxima de não tocar, os dedos imaginados na ferida misteriosa do tempo. A atitude defensiva mais em uso contra tal pensamento é reproduzi-la, a obra, mais uma e ainda mais uma outra vez. Fundo de selfie, post, efêmero story, NFT. Assim conserva-se a distância segura, o abre-te fecha-te sésamo.

Um homem de peruca atirou uma torta na Mona Lisa, capítulo repetido de um desejo contínuo de contato. Tem sido o quadro atacado com comida, xícaras, spray, objetos cortantes. Mas, antes de tudo, a obra foi roubada, permanecendo escondida no quarto do criminoso por dois anos, em clandestino horror ou felicidade. Há algo de insuportável e irresistível em sua presença, é o que parece. O arrepio de um sorrisinho imortal, um sorrisinho de nada. Maldita Gioconda, maldita, Geni, cercada por vidro à prova de bala numa sala rica e deselegante.

Ataques em que há intenção de que a obra sobreviva, que adquira uma marca de passagem por mais esse dia, por mais esse estranhíssimo um entre uns, infinitos e incontáveis. Por favor, não estou defendendo ataques a museus, estou pensando memória. Hoje em dia é preciso dizer constantemente coisas enfadonhas, deixando as melhores para amanhã, um amanhã que bota em perigo o relógio porque nunca vem, porque precisava, enfim, que algumas coisas fossem ditas, disso dependiam seus ossos.

Ossos são grandes atrações de um dos meus museus preferidos, o de história natural situado na cidade de Nova York. Dinossauros, claro, mas outras tantas coisas do mundo. Houve uma época em que eu ia trabalhar lá duas vezes por ano, e nunca deixei de visitar esse lugar, sempre mais desejado pelas crianças do que pelos adultos. Um museu cafona, me diziam pessoas sem graça, dessas medularmente entediantes.

Há crianças em todos os museus, desafiando e aprendendo regras de mãos e gritos, desobrigadas de gostar do que se deveria, mais interessadas às vezes em botões de elevador do que em grandes obras da história, ao mesmo tempo capazes de dizer coisas brilhantes e comoventes diante de um quadro, de uma escultura ou de uma ossada de mamute, coisas de uma surpresa que os adultos gostariam de esconder, porque julgavam ter enterrado tudo tão bem, tão adaptados em seu constrangimento. Não raro empurram logo utilidades, querem que elas “saibam” o quanto antes, morrem de medo de tudo. Às vezes a gente precisa reaprender a brincar, não só “na hora certa”, com as “coisas certas”, brincar como um jeito de viver a vida, um jeito que, ao contrário do que muitos pensam, não é sinônimo de irresponsabilidade.

Museus são às vezes a caverna dos 40 ladrões de Alibabá, com seus saques milenares expostos em ambiente controlado. Com suas lojinhas, áreas de descompressão em que o muito demais da arte, caso apareça, é domado em simpáticos trecos para o dia-a-dia, com seus cafés moderninhos, livros para enfeitar mesas e garrafas de água caríssimas. Para alguns já tanto faz.

Naquele museu onde os humanos fazem mostra do que chamam natureza há uma imensa réplica de baleia azul, construída a partir de uma fêmea capturada em 1925 no litoral dos Estados Unidos. Uma coisa assim suspensa no teto. Embaixo dela é possível deitar e se fazer navio afundado observando a giganticidade daquela criatura cuja presença sugerida só não é mais assombrosa do que a do próprio oceano que a desenha, nome de onde habitam sonhos vorazes e a senhora Iemanjá, rainha das cabeças.

Se a baleia viva irrompesse impossível sobre nós ali deitados sob sua réplica, talvez virássemos estrelas, mudássemos o rumo das pessoas ou restássemos como a cidade de Stranger Things, onde a maioria dos adultos é árida e indiferente a tudo o que se move, onde escutar é coisa rara, onde ninguém quer estar vivo. Se fôssemos esmagados pela réplica, seríamos acidente na margem de erro. Minuciosamente eternizados no deserto classificado das hemerotecas, esquecidos em alguns anos pelos aplicativos de celular e suas pessoas acessórias. De todo jeito morreríamos, isso é certo, mas arrisco dizer que nivelando as coisas em absoluto por aí é que se conserva o pior.

Subindo as escadas do Masp para fora da minha cabeça de peixe, vejo estudantes. Com bandeiras ondulantes e vagos pertences contrariam os assaltos na avenida Paulista. Sob as concretas pernas vermelhas não sentem medo de que despenque do alto a enorme caixa máquina cheia de tesouros do tempo e duríssimos cavaletes, blocos memoriais da arquiteta dos olhos de vidro.

Talvez avistem no conjunto enorme o caranguejo que um dia desprenderá garras da fundação cruzando de chão e lama, lado a lado, a cidade, o país que ainda houver, libertando de fato o real excêntrico do vão. Corre a lenda de que nas horas mais frias do subsolo, antes de os últimos funcionários fecharem atrás de si as portas e o balaio das obras, escuta-se do nada o créc créc.

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