O bonde do dom

Quero ser ryka! Entre ser feliz e ter razão, a colunista busca o significado de uma vida plena nas epifanias provocadas por artes, corpas e performatividades.


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Ilustração: Mariana Baptista



Trabalho em samba, e não posso reclamar. Diz a canção de Marisa Monte, Arnaldo Antunes e Carlinhos Brown. Pois numa entrevista de 2014, o escritor e psicanalista Contardo Calligaris versava sobre a felicidade, tema que persegue parte de nós. Ele dizia que, em lugar de se preocupar com a felicidade e seu mistério, preferia se esforçar para viver uma vida interessante. O que seria então uma vida interessante, ele segue, uma vida plena: um estado de espírito ou um estado de mundo? Seguia eu também, cá com meus botões, quando li o print dessa página, grifada em marcador amarelo, no instagram do jovem curador de arte Victor Gorgulho, acerca do livro póstumo de Contardo, lançado faz pouco, O Sentido da Vida. O italiano que nos deixou precocemente era um intérprete das almas brasileiras – e universais.

“Eu só quero é ser feliz”, prossegue o famoso “Funk da Felicidade”, que define: “andar tranquilamente na favela onde eu nasci” (Cidinho & Doca, 1994). E quem passou quatro anos em busca da felicidade é a galera de Succession, a super série da HBO Max. Mas que nada. Caindo mais uma lagriminha do rosto de Shiv antes que você termine de falar “tendência-quiet-luxury”. 

E antes de entrarmos em armadilhas classistas, entretanto, vamos voltar para as perguntas de Contardo Calligaris, que em um dos três textos do livro problematiza até o hábito de perguntar “tudo bem” que é característico do falar brasileiro. Oi, tudo bem? “Não sei”, ele costumava responder. (Uma mulher que trabalhou comigo, certo tempo, dizia sempre que não, quando na realidade era só uma maneira de salutar a pessoa que chegava. Até que um dia, recomendei: Luciana, faz uma coisa: MENTE. Ninguém realmente queria saber.)

É possível ser feliz atravessando problemas grandes, sérios, perdas? Ou a gente pode ter momentos de alegria no meio de tudo isso? Ou ainda: é possível ser feliz estando muito triste? O que é esperado da gente na alegria e na tristeza?

“Você está bem???” implica tanto preocupação (falsa, às vezes) quanto juízos de valor (uó). Enquanto: como você vai? Como está você? são mais formais. E aí, me conta de você! Informal e mais afetuoso, convidativo. Linguagem, né? É tudo.

Vai dar certo. VDC.

No início do ano, em fevereiro, morreu meu amado, adorado companheiro de 13 anos, o Muzi, que muites de vocês conheciam pessoalmente ou do Instagram. Ele se foi em coisa de um mês, levado por um câncer brutal e agressivíssimo. É a primeira vez que falo disso em público: não fiz post emotivo com carrossel de fotos, não contei para fora do meu círculo mais próximo. Achei que minha dor não era melhor nem maior que a dor de ninguém, e decidi seguir. Nem ia escrever sobre isso aqui, agora, mas acabou saindo. Talvez estivesse precisando falar (rs). Mas era pra dizer também que, apesar de chorar quase todo dia sentindo a falta dele, continuo no compromisso de negociar (comigo mesma e com o cosmos) minha alegria diária. E além disso, nos dias de hoje, se não aconteceu no Instagram parece até que não aconteceu. Então de quando em quando posto umas fotos dele de #TBT e quem não sabe me responde com comentários fofos. É uma maneira de ele estar vivo.

Também não era sobre isso esta coluna. Mas pode ser também.

Em busca de uma vida rica em significado, vou para a arte. Vou para a vida dos outros. Vou para gente inteligente e criativa falando e produzindo. Vou para a literatura, para ouvir sobre o que não sei. Saio de mim. Epifanias.

Como em Torto Arado, o livro de Itamar Vieira Junior, que vai virar série de Heitor Dhalia, tendo a genial Luh Maza entre as roteiristas. Antes da estreia, entretanto, recomendo a leitura. Como em Alterações Vividas Absolutamente Fantasiosas, instalação imersiva e abundante do AVAF no Sesc Avenida Paulista, um rush de cor, sexo e alegrias (por que não dizer?), em cartaz até julho, não perca.

Em busca de uma vida rica em significado, vou para o candomblé e para a umbanda, para a mata, para o mundo dos orixás e das entidades, no estudo e no dia a dia, na escrita de Luiz Antonio Simas, filósofo das ruas e tradutor do espírito brasileiro, que citei em outras colunas nesta casa. Leio Uma História do Brasil, enquanto aguardo chegar Crônicas Exusíacas & Estilhaços Pelintras, já em pré-venda. 

Vou para outros corpos e corpas, de preferência em movimento. Na excelência do Grupo Corpo, que tive a oportunidade de rever ao vivo, pela primeira vez depois da pandemia (e chorei, e chorei). Na magia de Puma Camillê, “futuristic ancestral multidisciplinary artist” (como ela se define em seu perfil), que faz VogueyCapoeira de um modo único e absolutamente original.

Como disse, trabalho em samba, e não posso reclamar. E todo dia tenho o privilégio (real oficial) de ver o “Escalpe”, de Tunga, no chão do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, na mostra que acabamos de abrir, “museu-escola-cidade”. Venha ver.

Em busca de significados, olho para o mar e levanto os olhos para o céu, procuro pela lua e pelas primeiras estrelas da noite. Nada como um bom clichê para lembrar que a gente está viva.

Esta coluna é dedicada à comunidade LGBTQIAP+, da qual orgulhosamente faço parte.

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