Noites sem respostas: se eu virar uma marca pessoal, o que sobra pra mim?

A fórmula do sucesso está em você mesmo, dizem por aí. Basta ser seu próprio departamento de marketing, vendas, comunicação, CEO e tudo mais que puder. Só não dá para tirar férias.


coluna luigi 2023 2
Ilustração: Gustavo Balducci



Nesta semana, o The Cut publicou uma reportagem sobre Pyer Moss. Grosseira e resumidamente, fala que o estilista e fundador da marca, Kerby Jean-Raymond, faz mais sucesso pelo que representa do que pelo que faz. Ou entrega. Um dos pontos centrais do texto é a produção ínfima, às vezes inexistente, do que é apresentado nas semanas de moda. Tem também depoimentos sobre roupas mal feitas, relações complicadas com os fornecedores, ambiente de trabalho hostil, má gestão, pagamentos atrasados e atitudes pessoais reprováveis.

Parece um post de denúncia, uma tentativa de cancelamento com muitos caracteres e alguma apuração jornalística. No entanto, a matéria não dá conta de explicar alguns outros pontos no mínimo primordiais. Por exemplo, não tem uma linha sobre como profissionais negros são cobrados e avaliados de forma muito mais rígida do que seus colegas brancos. Qualquer negociação fica mais complicada, a desconfiança vai lá pra cima, os termos e condições, mais duros. Quando é para pedir empréstimo ou crédito no banco, vixe, falta só exigir exame de DNA.

Burocracias à parte, tem uma lente de aumento gigante, com foco bem questionável, analisando tudo que a pessoa, a marca – tem diferença? – faz. Como se a pressão já fosse altíssima. Quando alguém consegue furar a bolha, ser reconhecido, a pressão sobre aquele herói é absurda.

Sueli Carneiro, filósofa, escritora e ativista do movimento negro, falou sobre isso quando foi ao podcast do Mano Brown, o Mano a Mano (se você perdeu, dá para escutar aqui). Não lembro das palavras exatas, mas ela explica como os tokens de sucesso são programados. Uma permissão calculada e pontual do sistema para evitar a desilusão completa. Todo mundo feliz não dá lucro, geral desacredita revolta. Melhor evitar abalos à estrutura e às engrenagens. Só que é cruel. Se ele conseguiu, eu também consigo, sabe? E vai tentando. Do outro lado, um único ser humano representa e carrega os sonhos, esperanças e mais um tudo de uma comunidade inteira. Imagina se ele escorrega?

“Somos CEOs de nossas próprias empresas: Eu Ltda. Para estar no mercado hoje, nosso trabalho mais importante é ser o chefe de marketing da marca Você.” – Tom Peters, para revista Fast Company, em 1997.

Poucos tinham como saber se Kerby maltratava funcionários, se atrasava pagamentos e tal. Quem sabia, ficou fria. Quem poderia e deveria buscar saber (a imprensa) preferiu deixar pra lá. O cancelamento tá logo alí. E o estilista, com seus milhões de seguidores, já colocou uma galera na berlinda. Questionar, apontar inconsistências em seus métodos, na empresa, poderia facilmente provocar uma avalanche de críticas e xingões. Jurisprudência para isso tem de sobra.

A repórter Tahirah Hairston encerra o texto com a afirmação de que o único produto hero (aquele que vende um monte e se torna uma importante fonte de renda para o negócio) produzido por Kerby foi ele mesmo. Mas será que ele teria o mesmo sucesso se não tivesse entrado de corpo e alma no conto de que as pessoas precisam ser suas próprias marcas?

Não quero eximir ninguém de culpa e responsabilidade. Mas pensa bem: quantas pessoas bem-sucedidas que você conhece estão fora de qualquer rede social? Vai, deve ter pelo menos uma. De onde vem o sucesso dela? Do seu conhecimento, do que faz, das suas habilidades, das suas conquistas, de como agrega, transforma ou melhora condições de vida ou do planeta, ou da sua aparência, de como se apresenta, se vende? 

O termo marca pessoal surgiu em 1997, a partir de uma matéria de Tom Peters na revista Fast Company. Era sobre as mudanças no mercado de trabalho e o derretimento das burocracias empresariais, que deram cabo ao crescimento de carreira baseado em conhecimento, feitos, conquistas e habilidades específicas. Promoção, dali em diante, só se você souber se vender como um grande hit, exclusivo e insubstituível. CV nunca mais. “Somos CEOs de nossas próprias empresas: Eu Ltda. Para estar no mercado hoje, nosso trabalho mais importante é ser o chefe de marketing da marca Você”, escreveu ele, 25 anos atrás.

Com o eu acima do nós, o individual antes do coletivo, qualquer posição, lei, decisão ou ação em desacordo com o próprio desejo ou benefício é uma afronta ultrajante. Não dá, BASTA! Chega de corrupção! Cadê o Brasil que dá certo (pra mim)?

Sob o domínio das empresas de tecnologia e com mediação das redes sociais, além de CEO e marketeiro, tem que ser relações públicas, publicitário, assessor de imprensa, emissora e editora particulares. Na verdade, tem de ser tudo, menos você. E quando se vive da sua marca pessoal, não existe diferença entre o que se é e o que se faz. Tudo é conteúdo. Cada curtida, novo seguidor e comentário é um impulso profissional. 

(Um breve parênteses: isso tem a ver com flexibilizações das leis trabalhistas. Sem garantias e cobranças crescentes, muita gente viu na uberização a solução perfeita. O mercado de influência tem uma lógica semelhante. Chega de chefe, você é seu chefe é a mentirinha que contam. Ambas as áreas vendem como autônomas, embora sejam reguladas e direcionadas por grandes empresas de tecnologia. É o sonho do patrão, não se compromete, apenas recebe. No fim, é como escreveu o sociólogo Zygmunt Bauman, é uma solução individual para um problema social.)

Babado. Além do baque na saúde mental, tem impactos seríssimos na sociedade. As relações viram colaborações, parcerias. Lembra como era conhecer alguém? Agora é mais simples, quantificável. Quanto seguidores? Engaja bem? Já foi cancelada? Sexualidade, desejo, sedução e erotismo são coisas do passado. É só olhar as pesquisas sobre como as novas gerações são condicionadas a entender o sexo de forma objetificada e pornográfica. Nossos corpos também não pode, dar sinais de pessoalidades, precisam ser perfeitamente harmonizados à imagem que garante mais likes.

Nem o funcionamento de instituições políticas e democráticas estão seguros. Com o eu acima do nós, o individual antes do coletivo, qualquer posição, lei, decisão ou ação em desacordo com o próprio desejo ou benefício é uma afronta ultrajante. Não dá, BASTA! Chega de corrupção! Cadê o Brasil que dá certo (pra mim)?

Veja bem, não estou falando que opiniões, ideologias, crenças não devem ser defendidas, expostas. Desde que não ignore o Estado Democrático de Direito nem seja discurso de ódio, tá valendo.

Enfim, o descrédito e a disfunção institucional vem em grande parte dessa visão deturpada da realidade. Uma realidade fajutamente narcisista, amplamente egoísta, com delírios justiceiros com grande propensão à condenação. A justiça restaurativa não tem vez aqui. O negócio é punir mesmo, custe o que custar. Vide Sérgio Moro.

Uma vez transformada em marca, a personalidade some. Nada é sobre a pessoa, é tudo é sobre produto, conteúdo, números, métricas, quantificações. Todos os aspectos da vida viram moeda.

Lá nos primórdios da internet, acreditava-se que nossa relação com o mundo e com as pessoas iria se transformar de um jeito nunca visto antes. Todos conectados, integrados numa grande comunidade global, democracia em velocidade máxima, pra geral. Jurou. O que se vê é que, à medida que o mundo digital captura mais da nossa imaginação e tempo, o mundo material retrocede, se torna menos real.

Uma vez transformada em marca, a personalidade some. Nada é sobre a pessoa, é tudo é sobre produto, conteúdo, números, métricas, quantificações. Todos os aspectos da vida viram moeda. Não tem pausa, descanso, horário de almoço, cafezinho, atestado. Um dia sem postagem e o algoritmo já vem com mimimi, fica magoado e te coloca de castigo, lá pra baixo.

Não à toa, tem muito influenciador mudando de carreira, buscando alternativas profissionais off-line, com uma divisão estrita entre vida pessoal e profissional. Dizem estarem exaustos, com burnout, ansiedade em nível máximo, sentem-se vazios, perdidos, incapazes de se conectar, de se relacionar, de serem pessoas.

Como escreveu o sociólogo Zygmunt Bauman, é uma solução individual para um problema social.

A coisa é tão complicada e cruel que atinge até quem não lucra com sua persona digital. Por meio da tecnologia (e das empresas que a controlam), somos condicionados a ficar mais em frente às telas do que interagindo com o mundo em torno delas. Nas as mídias sociais, somos treinados a só perceber as hipérboles, a urgência, o escândalo, a estridência, o polêmico, sempre à distância e fracionado. O resultado é uma percepção e entendimento da realidade completamente distorcido.

Qualquer pensamento, fala, encontro, refeição, decepção, dificuldade, sentimento, emoção, frustração, ida ao banheiro, resistência queimada, chave perdida, espinha no rosto, ida ao hospital, ai, chega. Se não postou, não aconteceu, sabe? Deus o livre de postar e não engajar. Atestado de chata – se bem que chatice rende curtidas. Atestado de desimportância. Você não vale nada, ninguém tá nem aí. É só mais um, sem destaque, inotável.

Impossível sobreviver sem validação. Seus amigos não contam, as experiências físicas quem sente é você. Será que estou no rolê errado? O legal está em outro lugar? O que tá acontecendo? Partiu terapia? Falam muito disso. Prefiro estudar as boas práticas daquela rede, reproduzir modelos de sucesso, aguardar a próxima polêmica. Não interessa sobre o que. Mas quando acaba a bateria, bate uma solidão… Pára, deixa de ser louca. Olha quantos comentários você ganhou, quantas DM trocou, e os reposts? Não dá pra parar. É viciante. Existe um URSA, usuários de redes sociais anônimos?

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