Pensando na pergunta do título, o que é ser hétero, afinal, o que isso de fato significa? Depois de uma semana lendo tantos absurdos misóginos, machistas, eu, que me identifico teoricamente como mulher hétero, achei importante falar sobre essa palavra que, ao que parece, tem definido muito mais do que deveria.
Vamos partir do sentido no dicionário e segundo a Wikipedia, um dos oráculos colaborativos das redes:
Relativo aos dois sexos.
Relativo ao tipo de atração e/ou relação sexual entre pessoas de sexo oposto
“Heterossexualidade é atração romântica e/ou sexual entre pessoas do sexo ou gênero oposto. Como orientação sexual, a heterossexualidade é “um padrão duradouro de atração emocional, romântica e/ou sexual” entre pessoas do sexo
oposto; “também se refere ao senso de identidade de uma pessoa com base nessas atrações, comportamentos relacionados e participação em uma comunidade de outras pessoas que compartilham essas atrações.”
Bom, se a gente fosse ter o rigor necessário, aqui ou em qualquer lugar, até esse negócio de “sexo oposto” teria de ser explicado. Isso porque, de verdade, “sexo oposto” já subentende uma certa compreensão do que é sexo e de que esse sexo dado (quando? como? com quais autorizações? essas autorizações são pessoais, mas também sociais, então como é que se organizam, se constituem, se misturam?) se situaria nas bases de uma oposição a outro. Isso nos faria entrar na discussão sobre o que seria uma relação sexual (não estou falando de transar, mas em algo da teoria, do formal, do que a psicanálise lacaniana vai analisar e declarar na frase “não há relação sexual” ).
Só daí já dá para perceber que hétero guarda, como praticamente todo o universo em certo sentido, algo de uma construção. Ah, mas eu acredito que nasci hétero.Tá, mas “acredito que nasci hétero” não deixa de ser uma construção. Outros vão querer rebater com a Natureza, mas precisa ver que Natureza é essa, entende? Como já repeti várias vezes aqui, seres de fala que somos, estamos encrencados, enroscados e lambuzados na linguagem que fazemos e que nos faz. Daí muitas vezes a solução imposta aparecer com o peso de uma atribuição divina, aquele truco acima de tudo e de todos. Mas o próprio acesso a essas revelações divinas não é direto. Esse embrulho, obviamente, vai longe.
Mas vou escolher aqui um recorte, uma provocação.
Da maneira que hétero foi organizado na nossa sociedade, pensando aqui Brasil, mas na real é bem mais amplo. Vamos lá, hétero tem um caráter ideológico que por um lado passa por e vai muito além da escolha amorosa/sexual pelo sexo oposto na dupla homem-mulher. Por outro lado, hétero pretende oferecer um guarda-chuva, mas oferece, muitas vezes, uma jaula.
Não vou me aprofundar nisso, como comentei antes, mas não dá pra deixar de citar certas coisas. Por exemplo, se uma mulher trans namora um homem cis, essa é uma escolha que teoricamente se encaixa na definição “oficial” de hétero. Se um homem trans namora uma mulher trans, também. Para dizer que isso não é verdade, precisamos colocar muito mais nessa discussão. E a ideologia, as formas de construir conhecimento, a organização das exclusões, as subalternidades, a forma de lidar com as diferenças, está tudo aí nesse meio. Há muitas formas de fugir dessa grande liberdade que se anuncia nas esquinas dessa discussão: religião, medicalização patológica, falsas ideias de inclusão, transformação das lutas em marketing, fundamentalismos etc
E voltando à jaula. Opondo o “mundo hétero” a pessoas gays e trans, certo discurso reacionário se mostra mais do que gostaria. Em primeiro lugar, porque aí há uma série de diferenças, mas nenhuma delas constitui necessariamente uma oposição. Ser hétero virou uma espécie de regra de aceitação que não está desconectada da aprovação do mundo como ele está. Aceitar o sistema econômico, o racismo, o sexismo, a hierarquia patriarcal. Basta notar, por exemplo, que mesmo quando uma mulher cis e branca se declara hétero, essa declaração não tem o mesmo peso de quando um homem branco e cis afirma seu posto de hétero. O hétero top é sempre um homem. Um homem que sustenta esse mundo podre, ruindo por todos os lados, um mundo que só é enquanto luta e transformação.
O hétero,dentro de certa perspectiva, é uma prisão. E isso não está necessariamente ligado a quem você ama, com quem você transa, nada do tipo. Ou melhor, essa orientação, essa escolha, essa busca, essa preferência não bastam. Hétero é uma ideia que pode ser apropriar,e se apropria, de várias dimensões da vida. Exige submissão com a promessa de submeter algum outro a você. O embuste está aí, e tem fundamentos solidificados ao longo de séculos de colonialismo, culto à propriedade e sofrimento.
Esses dias muitas amigas comentaram indignadas algumas falas e posicionamentos que ajudam a explicar o que estou querendo dizer. A chamada traição é um lugar especial da prisão hétero. É um dos lugares onde o homem hétero pode marcar sua ideia de supremacia, seu reino. Mesmo quando em tom de arrependimento, é ele que tem o poder e a palavra. Resta à claque aplaudir. Vejam bem, perdoar ou não uma quebra em uma relação de lealdade é assunto bastante particular, o certo e errado aí são também relativos, necessitam de contexto, é preciso sempre ouvir os envolvidos antes de dizer qualquer coisa. Há tantos acordos possíveis, tantos jeitos cuidadosos.
Isso é um ponto. Outro ponto é um cara usar de seu poder, e às vezes um poder que mobiliza milhões de dinheiros, milhões de likes, milhões de pessoas, para sentenciar como a situação deve ser resolvida. A coroa sobe à cabeça.
Desnecessário dizer que uma mulher não tem essa prerrogativa. Nenhuma mulher, mesmo as privilegiadas pelos nomes branca, cis e hétero. Se ela trai, ou mesmo se há suspeita, o tribunal cai em cima pesado. Inclusive não faltarão mulheres com tochas para queimar a colega, a serviço da ordem. É uma doideira isso, mas é acima de tudo muito triste.
Outra amiga, desconsolada com as trilhas das festas juninas, me mostrou uma música horrorosa em todos os sentidos. Ruim, mal feita, misógina, com um ranço do senhor colonial muito abertamente posto. A letra apresenta um cara que quis transar com a companheira, e ela não quis, não estava com vontade. A solução vem na forma de uma mulher “reserva”, é esse o termo usado. E há a justificativa clara, se você não me dá quando eu quero, eu chamo a outra, e você não pode reclamar. E ainda têm a desfaçatez de chamar isso de amor. É realmente muito baixo o nível da conversa.
E a “reserva”, que a letra se recusa a chamar de “amante” (essa diferença é tratada a partir da recusa da parceira, ou seja, ela é responsabilizada por existir uma “reserva”), que espaço ela ocupa? Se ela faz suporte ao macho tirano fica meio estranho o papo de “ai, eu sou livre”. É algo a se pensar nas teias de opressão, afinal, qual é o nosso lugar?
Não à toa tem tanta gente repensando formas de relacionamento, e isso é muito importante. Com o cuidado de não mudar só de vitrine, deixando as estruturas intactas.
A mulher hétero fica muitas vezes reduzida a isso, a esse lugar lamentável na economia de trocas. Se hétero é isso aí, eu quero descer. E todo esse quadro não é péssimo só para as mulheres.
A masculinidade construída nessas bases, ela é miserável. Miserável. Solitária em seus grupelhos barulhentos, medrosa de tudo, acuada, sempre pagando de poderosa, sempre convocada à violência física ou simbólica. Não à toa em volta dos machos dito “alfa” etc, estão sempre rolando casos de estupro, violência doméstica, exemplos de falta extrema de lealdade às companheiras, coisas que não se limitam a transar com outras mulheres.
Esse tipo de masculinidade tem consequências diferentes em diferentes recortes de classe e raça. É muito sério, o estrago é muito grande. E a coisa vai se misturando, por exemplo, a marca inegável do que estou falando aparece na mentalidade do coach vitorioso, do super-herói de mercado, do cara sem limites. Esses dias, um homem jovem morreu após participar de uma maratona anunciada de última hora como desafio corporativo. Um trajeto que de um dia para outro saltou de 21 km para 42 km. Sem preparação. O cara postou vários vídeos exaltando esse papinho furado e, mesmo tendo sido avisado pela família sobre os perigos, foi lá. Teve um infarto.
Hétero hoje é um dos nomes da supremacia. Um nome decadente, que nada tem a ver com amar e ser amado por quem quer que seja. Você pode se declarar homem cis e passar sua vida se relacionando com mulheres cis sem precisar se identificar com essa cartilha do hétero padrão, sem precisar seguir essa toada. Mas, para isso, você precisa se mexer, contestar, viver e fazer seu caminho com outras coordenadas. Não adianta só papo, o discurso precisa estabelecer uma relação de afeto com a ação, com a vida vivida de todo dia.
A gente pode mais e melhor do que tem rolado. Outra vida, outro mundo nesse mundo. Todo mundo, independente do que temos entre as pernas.
Para ler conteúdos exclusivos e multimídia, assine a ELLE View, nossa revista digital mensal para assinantes