Por que Renaissance é o melhor álbum de 2022?

Na virada dos 40 anos, Beyoncé resolveu se divertir – para a alegria de todos nós.


Gif com duas imagens em PB de Beyonce, de perto e de corpo inteiro
Arte: Mariana Baptista



 

“Nós poderíamos ser muito melhores se não quiséssemos ser tão bons” 
Freud

Sabe aquela pessoa que passa muito tempo em uma péssima parceria extremamente limitante e cerceadora, que faz com que ela nunca mostre tudo que é ou poderia ser?

Então, essa pessoa, de repente, ‘cai na real’ e se dá conta de que a vida é muito maior e melhor do que ela tem se permitido viver. E rompe essa parceria. 

Pois bem, digamos que a maior força da música pop atual, a onipresente Beyoncé, se encaixe perfeitamente nessa descrição. 

Calma, não estou falando do seu casamento com o não menos importante e forte no universo da música Jay Z. Diferentemente do nome do filho de uma exuberante atriz global e gestante, todo o mundo sabe que Beyoncé e Jay Z formam o mais poderoso e imbatível casal da música há muito tempo. 

Eu tô falando do casamento de Beyoncé com a famigerada indústria musical norte-americana, com quem ela mantém um longo relacionamento íntimo, passando por namoro, noivado, casamento e… ressignificação. A rainha Bey começou a seguir por esse caminho ainda criança, quando ensaiava seus poderosos trinados nas festinhas familiares, conforme nos mostram as fofas gravações que circulam pela internet. E já dava sinais óbvios de que não viria ao mundo musical para ser apenas mais uma estrela pop. 

Os mais atentos sabem que a escalada da Beyoncé rumo ao topo foi milimetricamente traçada para ser o que é hoje: sucesso total e aparentemente inalcançável, ao menos pelas próximas três décadas. 

Isso a aproxima de Michael Jackson, uma de suas já declaradas fontes de inspiração. Assim como o rei do pop, Beyoncé foi preparada para ser a rainha do pop, desbancando todas as outras e correndo em uma dianteira que tão cedo ninguém alcança. Só que sem as tensões e confusões familiares que imputaram no doce caçula dos Jackson Five. Feridas subjetivas profundas que se tornaram verdadeiras lombadas no caminho de sucesso que acabaria, inesperadamente, tão cedo. 

Beyoncé foi amada, encorajada, fortalecida, construída para enxergar sua grandeza, apesar dos sinais de problemas conjugais tradicionais dos seus pais, como infidelidade, por exemplo. Ao menos é o que parece.  

E se o racismo, guardadas as devidas proporções dadas pelo colorismo, faz com que a imprensa norte-americana AINDA não lhe trate com o merecido título de nova rainha do pop, sendo que ela é a que mais se apresenta como apta a ser sucessora do legado do Michael Jackson, o público faz isso por conta própria chamando-a de Queen Bey, com louvor.

 A cantora destila equilíbrio e garra, que justificam seu sucesso, e tem uma maneira suficientemente distante de preservar muito bem sua vida pessoal e a de estrela, sem deslumbres e afetações. Tudo muito conduzido para que ela só seja assunto pelo trabalho que apresenta, e não por “escândalos” que alimentam os tablóides na perigosa dinâmica “falem mal, mas falem de mim”.

Mas tudo isso teve um preço: afetou a espontaneidade ou, como dizem os franceses, o je ne sais quoi, o atributo que faz com que um artista deixe lastros de humanidade convincentes o bastante para nos fazer crer que é “gente como a gente”.

A cantora sempre foi tão perfeita que se tornou ligeiramente robótica. E isso não é uma crítica, mas uma observação de quem acompanha e admira não apenas a artista e seus feitos impressionantes, mas também a pessoa que ela é diante do seu vasto e hipnotizado público. 

Beyoncé é, sem dúvida, uma das mais inteligentes artistas do mundo pop, pois soube jogar o jogo, pisar com cuidado, absorver as oportunidades, obedecer as regras e assumir o comando na hora certa, com maturidade surreal e sempre atenta a toda e qualquer armadilha do sucesso. Mas o ônus disso fez com que a cada trabalho – irretocável, do ponto de vista artístico – deixasse no ar a impressão de que ela ainda não era ela o bastante.

“Estive para baixo, estive de pé, estive quebrada, desmoronei, me recuperei
Estive fora, estive ligada, estive de volta, o que você sabe sobre isso?
Fui a luz, estive sombria, fui a verdade, fui aquela energia King B
Eu fui carnuda, fui atraente, ainda uma nota dez, ainda estou aqui, isso sou toda eu”
Beyoncé, em “Cozy”

Eis que ela chega aos 40 anos. Aquela idade em que dizem que a vida começa. E Beyoncé surge com seu Renaissance. Esplendoroso, delicioso, luxuoso e… tocando o bom e velho “fod**-se”. Sim, esse álbum poderia ser sintetizado em uma única constatação: ela assumiu de vez a sua grandeza.

A cantora e compositora texana simplesmente rompeu com os pactos do pop norte-americano e de sua indústria viciada em números, muito mais do que em qualidade, e derrubou o cercadinho, parindo um disco que tem toda sua potência artística, suas grandes referências e inspirações, uma aposta para os caminhos futuros da música e muita, mas muita diversão e sensualidade. 

Aliás, diversão e sensualidade é uma palavra que cabe perfeitamente na descrição do sentimento que esse álbum provoca. É divertido, não só pela sonoridade, pelas letras, mas também pela Beyoncé que se revela ao mundo muito segura de suas escolhas e bancando suas vontades. Tudo isso explorando mais sua inteligência musical do que sua linda e poderosa imagem, já que não temos ainda nenhum videoclipe. 

“Minha intenção foi criar um lugar seguro, um lugar sem julgamentos. Um lugar para ser livre do perfeccionismo e de pensar demais. Um lugar para gritar, soltar, sentir a liberdade.” Beyoncé em suas redes sociais 

O single de estreia, Break My Soul, rapidamente se tornou hino de libertação dançante e, não por acaso, já que tem muito a ver com toda a ideia que parece ter norteado esse trabalho. Segundo a própria Queen Bey em entrevistas de 2021, a pandemia do COVD-19, que foi o período onde o álbum foi concebido, lhe despertou a necessidade de criar um lugar seguro e livre. E isso finalmente a aproximou de nós, reles mortais, que passávamos pelos mesmos sentimentos e necessidades.

“Summer Renaissance”, com uma letra libidinosa e cheia de trocadilhos lascivos, é uma das faixas mais sexuais de toda a obra de Beyoncé e traz um vocal e uma sonoridade que denunciam uma de suas assumidas influências, a inesquecível rainha da disco music das décadas de 1970 e 80, Donna Summer. Aliás, uma coisa não se pode negar: de Grace Jones a J. J. Fad, passando por Nicki Minaj, Salt’ N Pepa, Diana Ross, Robin S, Crystal Waters, e tantas outras, te faço um desafio: quantas divas negras da música você consegue identificar nesse álbum? Uma boa brincadeira é perseguir as homenagens e citações ocultas que Beyoncé fez às gigantes negras de ontem e hoje. 

A faixa “Cozy” por sua vez denuncia a tão presente libertação presente no álbum todo. Mas não uma libertação qualquer: uma libertação que emerge da maturidade, com a autoconsciência de poder interior e o conforto com ela mesma: “Confortável na minha pele/ Aconchegante com quem eu sou/ Confortávеl na minha pele/ Eu me amo, porra” . 

A faixa “Cuff it” é um eufórico convite (e o maior do álbum) à diversão e uma celebração da vida.  E em “Church Girl” ela literalmente “conversa” com Deus e diz que é isso mesmo, agora é do jeito que ela acredita ser melhor para ela, já que “As garotas safadas estão sendo desobedientes/ as garotas  da igreja não machucam ninguém”. 

E mais diversão! Curiosamente, isso soa feminista, já que nós mulheres somos sempre tolhidas do nosso direito à pura e simples diversão. Também temos muito medo do nosso poder pessoal, e é compreensível que, após certa idade, seja o desabrochar da maioria de nós. 

No final das contas, nesse momento de sua carreira e do alto de seus 40 anos, a rainha do pop nos deu da maneira mais despretensiosa e poética possível o que sempre soou inverossímil aos mais críticos quando ela tentava parecer verdadeira: a autonomia e a liberdade artística e pessoal. Nunca vimos uma Beyoncé tão sexy, tão verdadeira e tão solta naquilo que faz, embora nós, seus fãs, sempre soubéssemos que era exatamente isso que ela representava e tinha pulsando dentro de si. 

Bonito de ver e ouvir.

Além de toda a inspiração e reafirmação de que Queen Bey realmente se libertou, temos uma experiência musical que só ela poderia trazer ao mundo nesse momento: uma encruzilhada entre o presente e o passado, onde, no centro, fica óbvio uma verdade absoluta: a música liberta enquanto diverte e diverte enquanto liberta. 

E por essas e muitas outras razões que Renaissance, sétimo álbum da rainha do pop, Beyoncé Knowles, é sem pestanejar o melhor lançamento de 2022.

Joice Berth é arquiteta, urbanista, escritora, feminista e apaixonada por uma boa série. É autora do livro O que é empoderamento, da coleção Femininos Plurais.

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