Prisão sem grades

Como Samara despertou uma catarse na gente em plena festa de Halloween.


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Ilustração: Mariana Baptista sobre foto de Bruno Bralfperr



Dessa vez, nossa coluna vai ser diferente. Sem estatísticas, números, estudos ou pesquisas que comprovem o que está sendo dito. Trata-se apenas e, tão somente, do relato de uma pessoa em choque com a descoberta de uma parte dela que, só aos quase 50 anos, teve a chance de aparecer. 

É possível, também, que esse texto não converse com a maioria de vocês. Não por falta de capacidade intelectual, de jeito nenhum, mas porque nem todas tiveram a oportunidade de passar por uma experiência aparentemente banal, mas tão libertadora, como nós aqui do SHEt.   

Tudo aconteceu no mês passado, mais especificamente, na Festa de Halloween aqui da revista ELLE. Mas o que era para ser só uma festa incrível foi muito além disso e disparou quase uma catarse na gente. Vamos aos fatos. 

A festa tinha como tema “filmes de terror”. Tinha vampiro, bruxa, Wandinha Addams, múmia, zumbi, A Coisa, Eleven, fantasma, Hera Venenosa, Jason, Malévola, baldes de sangue falso, cicatrizes, lentes de contato e perucas pipocando por todos os lados. Todos devidamente montados na melhor make e performance. Eu e Camila fomos de Samara (O Chamado), um espírito com sede de vingança que vive dentro de um poço. Para quem não sabe, a Samara usa um vestido branco todo sujo (mais parece um trapo) e cabelos negros, compridos e escorridos escondendo todo o rosto. Até aí, tudo bem. Mas, apesar do tema e das fantasias assustadoras, era possível observar que 99% das mulheres pareciam absolutamente lindas. Já eu e a Camila abocanhamos com louvor o 1% restante. Estávamos irreconhecíveis e, além de horrorosas, economizamos sorrisos e palavras (já que a personagem exigia). E foi justamente essa tríade que fez com que nos sentíssemos absurdamente livres!

Calma, não nos julguem ainda. Não estamos falando aqui que é legal se enfeiar ou ser antipática. Estamos falando o quão libertador foi não ter que ser “mulher nessa sociedade”. Fotógrafos vinham alucinados com seus flashes para cima de nós e em nenhum momento pensamos se a luz estava boa, se o ângulo ia nos favorecer ou onde a foto seria publicada. Ah, então, quer dizer que a gente pensa nisso o tempo todo? Claro que não! Mas que a gente torce para sair bem nas fotos, isso não tem como negar. Ou seja, de alguma maneira, mesmo com informação e lutando para que as mulheres possam envelhecer em paz, sem sofrimento, nessa busca insana pela juventude, percebemos que fazemos, sim, parte dos 99% das mulheres que se preocupam com a aparência, exatamente como todas aquelas mulheres fantasiadas da festa.

Nossa liberdade pode até ser maior que a da maioria, mas ela não deixa de ter contornos e limites, ainda que pareçam invisíveis. Querer estar bonita não é futilidade, mas é importante saber que a coisa toda é muito mais profunda: fomos ensinadas a acreditar que a felicidade depende da aparência. Afinal, na nossa sociedade, precisamos parecer jovens e bem cuidadas, ou corremos o risco de não parecermos mulheres. Precisamos estar sempre atentas à demanda dos filhos, dos maridos, companheiros, ou não nascemos merecedoras de ter uma família. Precisamos ser simpáticas, meigas e, ao mesmo tempo, firmes no trabalho, mas sem nos impormos demais, senão somos taxadas de loucas que não sabem trabalhar em grupo. Precisamos parecer submissas e comportadas, ou “ninguém vai querer a gente”. Temos sempre que nos comportar de uma determinada maneira para caber nas situações. 

Claro que muitas de nós já conseguem viver uma realidade um pouco diferente, mas para a maioria das mulheres ainda é assim: vivemos em uma prisão sem grades. E, pasmem, não somos só nós, mulheres, que sobrevivemos nesse cárcere. Os homens também têm suas prisões. Por quanto tempo eles ainda terão que escutar que não podem chorar, não podem brochar ou têm que ser o principal provedor da família? Homem ou mulher, o ser humano está em uma encruzilhada imposta por todos. Uns cobrando dos outros (e entre si) comportamentos sem sentido para poderem continuar no jogo da vida.

É verdade que para nós, mulheres, a prisão é muito pior. Afinal, somos tão ou mais cobradas que eles, mas temos infinitamente menos liberdade de ser o que quisermos do que o sexo oposto. E isso, além de exaustivo, nos afasta cada vez mais de nossa essência. Em uma sociedade onde o machismo é estrutural, parece que chegamos a um ponto em que ser inteligente é nos fingirmos de bobas para sobreviver melhor. Como disse uma vez a jornalista e feminista Gloria Steinem: “O primeiro problema para todos nós, homens e mulheres, não é aprender, mas desaprender.”

E você? Como você seria se não tivesse que se preocupar tanto em parecer jovem? Se não tivesse que maneirar sua opinião para não parecer histérica no trabalho? Se pudesse expor tudo o que pensa, sem ser julgada ou chamada de louca em casa? Quem, afinal, você seria se não precisasse ser essa versão de você? Quanto a mim, acho que nunca cheguei tão perto de ser eu mesma como no ELLEoween. 

Seja lá o que esse “eu mesma” signifique.

Camila Faus e Fernanda Guerreiro são criadoras do @she____t. Uma plataforma de conteúdo feita para mulheres que acreditam que a idade dos “enta” rima com experimenta.

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