Ritos de passagem em streaming
Em sua coluna, Erika Palomino comenta as séries e filmes disponíveis em plataformas digitais mais comentados e interessantes do momento.
O mundo congela com cada episódio de We Are Who We Are, a série do momento. Aproveito o gancho pra falar de outros títulos do planeta streaming desta pandemia, que conquistaram minha atenção y meu coração. De alguma forma, estamos diante de ritos de passagem, desses momentos em que a individualidade e a subjetividade das personagens fala alto. Jovialmente alto, em que se destaca o conceito da liminaridade, esse entre-lugares, essa sensação de atordoamento. Que, não por acaso, nos atravessa, ao final estendido deste ano mais louco. Que 2020 passe logo.
We Are Who We Are
We Are Who We Are: Official Teaser | HBO
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Conta um recorte da vida de seis jovens americanos que moram numa base militar na Itália. Traz o conceito de third-culture kids, adolescentes muitas vezes filhos de diplomatas – ou militares – que pipocando de cidade em cidade têm dificuldades para desenvolver vínculos e elos. Comum desenvolverem, em compensação, transtornos de personalidade, problemas com drogas, com a polícia eventualmente, além de dificuldades nos relacionamentos em geral. O nome da série já entrega a ausência de juízo de valor sobre a turma, no enredo que se passa em 2016. O protagonista é o adolescente Fraser (Jack Dylan Grazer, de 17 anos, que fez It). Ele faz seus looks de forma quase nonsense, com muita personalidade e senso de moda. Fã de Raf Simons, como ele declara já no primeiro episódio (em que passa todo com uma deliciosa bermuda de skatista animal print), o personagem foi pesquisado com insights do influencer teen Mark The Ruler, e traz as unhas pintadas, uma jaqueta estampada com o logo dos Rolling Stones e um cabelo tão-ruim-que-é-bom: descolorido, com raiz aparente e textura com vida própria. Gender-fluid, ele se relaciona com Caitlin (a estreante and linda Jordan Kristine Seamon), da turma de Britney, interpretada por Francesca Scorsese, filha do cineasta Martin Scorsese. O casting é todo mara, e não por acaso vem assinado por Carmen Cuba, que também fez o elenco de Stranger Things, e tem Chloé Sevigny como a mãe de Fraser (o relacionamento deles é tenso e esquisito), e Alice Braga como sua mulher (dela, no caso). Faltou dizer que o diretor é Luca Guadagnino, de Call Me By Your Name, que de tão excepcional dispensa adjetivos. “Tem uma revolução acontecendo dentro de você.” Pelos diálogos, pelo roteiro, pela estranha base militar no Veneto, personagens que nos pegam de surpresa, a série é uma das melhores do ano. O figurino é de Giulia Piersanti, que fez com Guadagnino Call me By Your Name e seu remake de Suspiria. Citações à Balenciaga, entrevistas com Karl Lagerfeld e as cenas de festas e danças fazem o delírio de qualquer fã de moda. Qualquer coisa a mais que eu falar aqui é spoiler, então apenas veja.
Onde: HBO
American Honey
American Honey | Official Trailer HD | A24
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Outra direção europeia sobre a juventude americana, só que aqui a história se desenrola nos Estados Unidos, é a da britânica Andrea Arnold para American Honey (de 2016), escondida na Netflix desde 2018 com um nome imbecil: Docinho da América. Só na 40tena mesmo pra gente achar. O filme participou da seleção oficial do festival de Cannes, e apesar de ter ganho o Prêmio do Júri (e onde o elenco deu show no red carpet, vale a busca no YouTube), não fez sucesso comercialmente e também passou meio batido. Andrea ganhou um Oscar por seu primeiro filme, o curta-metragem Wasp, e anda badalada depois de dirigir alguns episódios de Transparent e da segunda temporada Big Little Lies. Também tem certa paixão pela juventude (seus filmes anteriores são Fish Tank e Whutering Heights). American Honey é um road movie, com um je-ne-se-quai de Kids. O roteiro foi inspirado pela leitura de uma notícia publicada em 2007 pelo The New York Times, de um grupo de adolescentes que viaja pelo interior dos EUA vendendo assinaturas de revistas. Soltíssimos, no filme, ao menos, compõe ali uma segunda família, ou a família escolhida, ou quase. A chefe do grupo é Riley Keough, filha de Lisa Marie e neta de Elvis Presley. É dela o conjunto mais babality de figurinos, assinados por Alex Bovaird (ela fez As Vantagens de Ser Invisível e Shame). A direção de fotografia é de Robbie Ryan, eles filmam de dentro da van, câmera no ombro, e colocam você dentro da cena. Ryan fez todos os outros filmes de Andrea Arnold e foi indicado ao Oscar pela incrível cinematografia de A Favorita, de Yorgos Lanthimos, com suas lentes em grande angular. Assim, entramos na vida loka do grupo de jovens, que redefinem o significado do que é ser solto. Shia Lebouf é o macho alfa do grupo, quase um tour manager, e organiza o rolê todo. A história começa com a entrada no rolê de Star, interpretada, ou melhor, vivida por Sasha Lane. Ela foi “descoberta” numa praia na Flórida, durante o Spring Break, e foi abordada pela própria Arnold. A busca era por pessoas que não fossem necessariamente atores, que não tivessem experiência ou mesmo que não parecessem atores. Foram abertos castings online com o seguinte texto: “quer participar de um road movie e receber $ se você entrar no projeto? Procuramos pessoas wild, physical, fearless and ready for adventure”. Durante um ano as diretoras de elenco Lucy Pardee e Jennifer Venditti vasculharam clubes de strip-tease, delis, bares e outras bibocas do gênero atrás de serumanis que pudessem passar verdade ao roteiro. De novo, não há julgamentos, somente o nosso, e uma explosão de vida, de tensão, de tesão. A química de Shia Lebouf e Sasha Lane explode e transborda para fora da cena (os dois tiveram um casinho, diz-que). A trilha sonora é brilhante e conduz o filme. Andrea Arnold encasquetou com a música da Rihanna, e ela pediu pessoalmente à cantora a liberação, para mau humor de Lebouf (foi a primeira cena a ser filmada). Bem, vá ver o filme.
Onde: Netflix
Queen and Slim
Queen & Slim Trailer #1 (2019) | Movieclips Trailers
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E falando em road movie, esse filme pesaaaaado de Melina Matsoukas é uma experiência completa, que tem como grande trunfo o roteiro de Lena Waithe, uma das mais badaladas do momento em Hollywood. Ela conta a história de um date marcado por um app que dá ruim, depois de uma dura errada da polícia. É a partir dali que a vida deles vai se transformando, e as personagens ganham contornos pra lá de inesperados. Menos do que Bonnie and Clyde, que todo mundo acaba citando (no filme alguém chega a dizer: “Black Bonnie and Clyde”, mas ela diz que prefere que a referência não seja um filme branco, e cita Até as Últimas Consequências e até mesmo O Mágico de Oz, sobre como a história deles muda, a partir dos encontros que acontecem na trajetória da dupla. A visão e a abordagem dos dois são também distintas, e não tem como o público não se colocar no lugar deles, não se sentir no lugar deles, isso é que faz o roteiro gênio. Os protagonistas são Daniel Kaluuya e Jodie Turner-Smith, ele indicado ao Oscar por Get Out (Corra!, de Jordan Peele), ela ex-modelo e jovem atriz, apenas perfeita. No elenco ainda, de novo Chloe Sevigny e Flea, fazendo papeis bem americanóides, e Indya Moore, de Pose, absurda, linda, também sem-defeitos. Queen and Slim foi filmado e lançado em 2019, garantindo também sua atualidade. A fotografia, belíssima, e o apuro na direção de arte, vêm do background de videoclipes de Melina Matsoukas, que assinou o já histórico Formation, de Beyoncé, e outros de Rihanna como We Found Love e Rude Boy. Ela cita explicitamente o também diretor de filmes musicais Hype Williams, e a estreia dele no cinema, com Barra Pesada (Billy, de 1998), e no videoclipe de Real Life, como referência na maneira celebratória como ele fotografa – e trabalha – atores negros. Dali sua paixão pelas cores, o azul, a luz natural, o verde… a fotografia junto com o design de produção. E as tomadas longas, que ela prefere, para se distanciar das edições nervosas do estilo do videoclipe, que ela traz de Wong Kar-Wai, como em Amor à Flor da Pele. A cena da foto, em Queen and Slim é desde já icônica e emblemática dos dias midiáticos de hoje: heróis em carne e osso, para os tempos de #blacklivesmatter.
Onde: Netflix
Ya no estoy aquí
Ya no estoy aquí | Tráiler oficial | Netflix
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Outro protagonista maravilhoso, um Ulisses mexicano, que lidera Los Terkos, uma turma pra lá de específica, em torno da kolombia, variação da cumbia, em Monterrey. As dancinhas, os cabelos absurdos, a cartela de cores intensas desta gema dirigida por Fernando Frías de la Parra conquistam. O tempo é próprio, com planos alentados, e a atmosfera intensa. Os terkos são rolezeros real. Juan Daniel Garcia Treviño hipnotiza nosso olhar quando aparece, seu frescor e o mistério de uma juventude difícil de decifrar.
Onde: Netflix
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