Se moda só é moda quando chegas às ruas, por que falar só da inspiração?
Explorar e decodificar as referências e elementos responsáveis por atiçar a criatividade é importante, porém não mais do que as roupas.
Lá pelo início dos anos 2000, quando começava me aventurar no jornalismo, recém-saído da faculdade de direito (um lapso padrãozinho), a primeira pergunta que fazia para um estilista era “qual foi sua inspiração?”. É uma questão válida, importante, porém um tanto perigosa.
Saber a origem, o ponto de partida, a fagulha criativa e a causa para o efeito do processo criativo é essencial para uma análise e entendimento completo (ou quase) de uma coleção e desfile (são coisas diferentes). Ajuda a amarrar a narrativa, construir uma mensagem e direcionar interpretações.
Acontece que quem vai na loja não sabe nada disso. Ou sabe e não está nem aí. A parte mais interessante da moda é sua capacidade mutante de se tornar mil e um elementos de linguagem para vocabulários e enredos particulares – que podem ou não ter a ver com o que seu criador estava pensando ou queria comunicar.
Por isso, os estilistas que não gostam de dar muitas explicações ou insistem que a coleção não tem tema são mais instigantes. Não tem palhaçadinhas. Seus trabalhos estão abertos a leituras e pontos de vista variados. Dependem da vivência, experiência, conhecimento e contexto de cada um.
“Há algo sempre constrangedor num artista explicando sua obra”, escreveu Nuno Ramos, no livro Fooquedeu.
Tem muito texto por aí (e eu mesmo já escrevi muitos deles) limitado ao campo das ideias, no caso, das inspirações. Explorar como um pensamento, emoção, reação ou sensação se desenrola até virar roupa, coleção e desfile é um prato cheio para amantes de semiótica e de contextualizações multidisciplinares.
Porém, o foco exclusivo nessa seara pode deixar de fora o objeto principal da análise: as roupas.
Ah, importante: não confundam o que acabei de escrever com apologia a tal moda pela moda segundo barbies alienadas, por favor. Esmiuçar as referências e tudo mais que levou uma pessoa a criar toda uma coleção em cima daquilo pode ser muito rico para explicar o que torna uma calça, um vestido ou um casaco especiais. O problema é quando o texto começa e termina sem falar nada sobre a prática. Quando entram as palavras-chave do momento em construções de frases poéticas ou literárias, vixe, os aplausos são garantidos, o engajamento idem.
Se a roupa faz sentido para o momento e clientela a quem se destina, se há alguma inovação técnica, uma evolução no design com implicações diretas em que a for vestir não interessa, deixa pra lá. Que bom ter gente pensando em espiritualidade, conexão, empatia. Lindo ver quem permite tempo ao tempo, preservar os saberes manuais, não esquece do fator humano. Gratidão.
“Uma moda que não chega às ruas, não é uma moda.” – Coco Chanel
Implicância à parte, nada contra tudo isso. Mas tudo contra tudo isso quando empregado aleatória e inconsistentemente ou como foco central da resenha, análise, crítica ou reportagem. Aliás, é uma saída fácil para desviar a atenção de roupas complicadas demais ou sobre as quais ninguém quer falar sinceramente para não desagradar as colegas. E sem contar nas problematizações baratas, embaladas por pseudo filosofias que mais obscurecem do que iluminam.
Vale mais a curtida do que a mensagem? Parece que sim. E não é um fenômeno recente tampouco exclusivo às plataformas digitais. É um vício antigo do jornalismo de moda diretamente conectado com o modus operandi da indústria e mercado local. São mil coisas: síndrome de colonizado, obsessão por mostrar-se intelectualmente superior, conectado com as ideias do momento, ou simplesmente com um pensamento (ou ilusão) diferente do das massas.
“Uma moda que não chega às ruas, não é uma moda”, já dizia Coco Chanel. Se é assim, do que adianta elucubrações exclusivamente sobre o que se passou na cabeça do estilista e se materializou no microcosmo da passarela? E as roupas? O foco não é esse? Diferentemente da arte (também comercializável), moda tem qualidades funcionais na sua essência. Por que não olhar com mais atenção e reportar como as roupas expressam as vontades daquele tempo, como fazem sentido, transformam e facilitam a vida de quem a veste?
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