Sejamos sinceros: ninguém gosta da Wandinha

Ela é aquela garota esquisita, que vivia isolada de todo mundo. O curioso é que muitos dos que declaram amor à personagem são a síntese de tudo o que ela repudia.


gif com duas imagens de wandinha addams: uma olha para a câmera e outra dança
Arte: Mariana Baptista



 

“Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?”
Fernando Pessoa em Poema em linha reta

A série Wandinha, dirigida por Tim Burton e exibida pela Netflix, isola a personagem da lendária Família Addams para desenvolvê-la com mais profundidade, trazendo para o espectador sua adolescência conturbada. É bacana, podem ver sem medo de cair nas armadilhas dos modismos fabricados para entreter o adormecido senso crítico dos abduzidos pela cultura de massa. 

Mas, diferentemente da ácida e soturna cria do mórbido casal Addams, criado pelo falecido cartunista norte-americano Charles Addams nos idos da década de 1930, o caminho escolhido por um streaming que orbita no mundo da política de cancelamento só poderia existir em paz e ser acolhido por aplausos diversos sendo escandalosamente romantizado e digerível. 

Imagine se poderiam manter aqueles diálogos de incitação direta à morte, à tortura e a todo tipo de bizarrice, nesses tempos onde todas as morbidades e distorções de uma sociedade narcisista e autocentrada causam um espanto tão gigantesco quando vêm do outro, embora sejam com frequência permitidas em si mesma. 

Ou seja, essa sociedade que, sob o verniz da boa conduta, esconde o deleite silencioso com a desgraça alheia. Será que “televisionar” a brincadeira dos irmãos Addams, que consiste em torturar o outro até ver quem grita primeiro ou quem sangra mais, ainda que na ficção, seria mais chocante do que a notícia sobre uma pessoa em situação de rua que morreu de frio na noite de inverno mais rigorosa do ano? 

Infelizmente, sim. 

O segundo horror até causa indignação, mas como diria a banda mineira Skank:  “A nossa indignação/ é uma mosca sem asas/ não ultrapassa a janela/ de nossas casas”. Tem sido assim, muita grita e pouca mudança.

Ou talvez eu esteja sendo muito “Wandinha”(não a romantizada, mas a real!) ao me referir à Netflix como um lugar onde todo e qualquer horror é suavizado para não melindrar as massas. Afinal, essa é sociedade das chacinas nas escolas, nas favelas, nos bares, nas danceterias – a sociedade da exaltação à tortura e da criminalização de vítimas de violência doméstica, não? Sei lá, me diga aí.

Mas a  Wandinha ( ou Wednesday, na versão original) da Netflix conquistou todo mundo. Mas espere… como diria o meme da Inês Brasil:

“Quem é ela?”

Será mesmo que estamos falando da mesma personagem? 

Ainda que romantizada, a Wandinha está longe, muito longe de ser uma personagem digerível a ponto de seduzir o espectador e se tornar tão querida e desejada. A menos que a série dialogue mais com nossa hipocrisia (sem ofensas!) do que com nossa percepção real dos comportamentos sociais reproduzidos na ficção. 

Afinal, quem é a Wandinha? Aposto que tinha uma na sua escola, faculdade, família, trabalho etc..

É aquela moça esquisita, que se vestia de maneira estranha, lia livros estranhos, não conversava muito e vivia isolada de todo mundo. 

Não se lembra? 

Aquela de quem os moços riam (e você ria junto…) e usavam para debochar dos outros dizendo “essa é sua namorada”, enquanto as moças informadas entre si se perguntavam “de que brechó ela saiu”,  se referindo ao looks desatualizados e descomprometidos com a moda do momento. 

A Wandinha era aquela que despertava nos professores uma mistura de discreto desinteresse e ligeira repulsa, porque era a verdadeira nerd: com frequência tinha as melhores notas da classe e estava sempre com os trabalhos em dia, mas não participava ativamente das aulas, respondendo perguntas ou se oferecendo para carregar os livros da professorinha mais popular. 

Falando em trabalhos, a Wandinha sempre fazia os dela sozinha, porque os grupos que se formavam espontaneamente nunca a escolhiam, afinal, quem quer ter a esquisita na equipe. 

Com isso, a Wandinha também não era muito adepta das aulas de educação física, já que, aí sim, a interação era mais do que inevitável, era parte integral da aula. A Wandinha não dançava com ninguém no “bailinho” de formatura. Nem fazia formatura. E todos davam graças a Deus, porque aquela menina sombria, sem graça, mal-vestida, antissocial e calada incomodava a todos, mesmo sem dizer uma única palavra. E quando dizia ninguém entendia, já que seus interesses e gostos eram completamente diferentes da massa. 

Ops, tem algo de errado com minha descrição? 

Não é essa a Wandinha da Netflix? 

Claro que é . Só que sem usar o modelito badalado da Alaïa (que na trama está em um brechó!) e nem dispor de poderes sobrenaturais, embora esteja sempre parecendo uma bruxa. 

E, não, você não gostava dela. Nem queria tê-la por perto. 

A Wandinha é só uma série de um dos mais acessados streamings do momento, ok, não sejamos tão profundos com algo que foi criado única e exclusivamente para o entretenimento leve e descompromissado de que tanto necessitamos neste fim de ano. 

Mas serve para avaliarmos o quanto somos capazes de criar afeto e admiração pelo diferente quando estamos desarmados do senso comum que nos molda e condiciona nossas percepções. 

A Wandinha que eu descrevo provavelmente não foi amada por você e pela sua turminha descolada, mas só porque vocês estavam todos envolto nas futilidades que ela diria abertamente que odeia. 

O que tem de pessoas declarando amor eterno à Wandinha do Tim Burton, e que são a síntese de tudo que ela repudia, chega a ser hilário. Há os que estão associando o comportamento autêntico da filha de Mortícia e Gomez Addams a transtornos mentais, já que esse é o caminho mais fácil para engolir o que não entendemos. 

Seria bacana aproveitar o hype da série para avaliar como tratamos o diferente, o não ortodoxo, o que não segue o fluxo nem a massa. Tratamos mal. Com distanciamento e um toque de perversidade. Preferimos ficar de longe observando com desprezo e destilando críticas tão venenosas quanto, muitas vezes, exageradas ou inverídicas.

Sem adentrar nas questões raciais, de classe e de gênero que dão contornos mais visíveis e profundos a essas dinâmicas sociais, infelizmente, em pleno século 21, ainda temos uma dificuldade gigantesca em aceitar a individualidade alheia. Mas o verniz nos faz repetir à exaustão o clichê: “seja você mesmo”, mesmo sabendo que ao sermos nós mesmos, na nossa complexidade e oscilação entre sombra e luz, deixaremos nossa pose de perfeição e seremos alvo de reprovação daqueles que não têm coragem de fazer o mesmo. 

E assim nos mantemos todos em uma prisão, que acaba com qualquer equilíbrio mental, prontos para projetar, naqueles que se libertam, nosso desgosto com a covardia que nos mantém nos confins das cavernas sociais. 

O importante é ser você
Mesmo que seja estranho, seja você
Mesmo que seja bizarro, bizarro, bizarro
Mesmo que seja estranho, seja você
Pitty, em Máscara

Nos assustamos com quem se mantém distante de certos teatros sociais ou com aqueles que não fazem questão de entrar no páreo das competições para ver quem é o “mais qualquer coisa” do momento. E com frequência jogamos essas pessoas na mais profunda solidão dos sentimentos de inadequação e não pertencimento. 

Figuras como a Wandinha, fora da ficção e guardados os devidos excessos (como soltar piranhas na piscina olímpica da escola para vingar o irmão), servem para nos chamar para a necessidade de investir na autenticidade, na expressão sincera de quem somos e de que não precisamos nos desgastar para caber no lugar de semideuses que a sociedade do espetáculo persegue –  e que só pode existir anulando nossa subjetividade. 

Então, que tal considerarmos que esse amor pela indigesta personagem da ficção é um chamado interior para que a gente possa aceitar nosso lado mais verdadeiro e menos agradável e lidar com generosidade com ele, criando, assim, terreno fértil para plantar a empatia e viver melhor com o que nos parece tão estranho?

Isso nos liberta e liberta os demais.

Joice Berth é arquiteta, urbanista, escritora, feminista e apaixonada por uma boa série. É autora do livro O que é empoderamento, da coleção Femininos Plurais.

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