Sobre a elegância de Diouana, a crítica de Sembène e as margaridas no caminho

Em sua coluna, Hanayrá Negreiros fala sobre opressão colonial e protagonismo feminino no filme La noire de…


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Antes de tudo, um aviso: para conseguirmos extrair a riqueza dessa obra cinematográfica, foi inevitável mencionar algumas partes do roteiro, então se você ainda não assistiu ao filme, eu recomendo que o veja antes. E como de costume, começo este texto no embalo de música, e para tal, escolhi as sonoridades da faixa Ruby do disco Ali & Toumani, de 2010, tocado por Ali Farka Touré e Toumani Diabaté.

Para esse mês, decidi escrever algumas considerações sobre o filme senegalês La noire de… (1966), que em uma tradução livre para o português é chamado com frequência de “Garota Negra”, mas que entendendo o contexto do filme pode ser traduzido para A Negra de ou de quem…

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Cartaz oficial de A Garota Negra (La noire de…), de 1966.

Foto: Getty Images

Antes de mergulhar na história, é preciso mencionar a importância da criação cinematográfica, das elaborações estéticas e do teor político que Ousmane Sembène, diretor e roteirista senegalês nascido em 1923, deu às suas produções. É durante a década de 60, mais especificamente em 1966, que estreia Garota Negra, com a belíssima Mbissine Thérèse Diop como a personagem principal Diouana, uma jovem mulher senegalesa com muitas aspirações, que embarca de Dacar rumo a Costa Azul, litoral sul da França, em busca de melhores condições de vida para ela e sua família, com a promessa de um emprego dos sonhos.

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Ousmane Sembène em set do seu filme Xala, década de 1970.

Foto: Getty Images

Com o desenrolar da história que é praticamente toda narrada a partir dos pensamentos da personagem principal, conseguimos acompanhar a colonialidade e a ideia de hierarquia e opressão que embalavam as relações entre senegaleses e franceses durante esse período, lembrando que o Senegal conquistou a sua independência da França em 1960. Aqui se evidencia a relação das tramas coloniais e de posse com o nome original do filme em francês.

Diouana acaba por conseguir um emprego como babá dos filhos de uma família francesa, e se prepara para viajar até a tão imaginada Europa desenvolvida e cosmopolita. É interessante notar em uma das cenas – em um rápido instante – a protagonista que está prestes a embarcar em sua nova jornada, folheando um exemplar da revista ELLE francesa, como modelos esguias e brancas vivendo vidas de mulheres bem-sucedidas e felizes, algo distante da realidade de Diouana, mas que ela também almeja de certa maneira. Porém, chegando lá ela se depara com uma série de situações constrangedoras e desrespeitosas que começam a acontecer sucessivamente. As crianças que deveriam ser cuidadas por ela não estão por lá a princípio e ela acaba por perceber que na verdade o que a família francesa queria mesmo era uma pessoa para fazer os afazeres domésticos sem folga, em um tom de escravização. As lojas, as belas roupas e sapatos que Diouana esperava conhecer e comprar com o seu salário parecem cada vez mais distantes e bem mais inalcançáveis do que ela imaginava quando morava no Senegal.

A sua patroa é extremamente grosseira e se incomoda constantemente com as roupas elaboradas que a personagem principal veste para fazer a limpeza da casa. E sim, o figurino de Diouana é um destaque a parte na história: vestidos midi e ajustados ao corpo bem à moda anos 1960, e que em outros momentos aparecem tecidos em formato mais amplo à la modelagem senegalesa, estampas que ora se alternam entre o “clássico” poá, ora remetem aos têxteis industriais africanos. Sem falar nos panos de cabeça e perucas que também são alternadas com penteados tradicionais. Os famosos brincos de margaridas – que serviram de inspiração para o figurino da personagem Ivone, interpretada por Larissa Nunes, na segunda temporada de Coisa Mais Linda –, colares e pulseiras, também dão o tom da elegância de Diouana, e que por quase nada, tira os sapatos de salto para fazer a limpeza da casa. Em tentativas frustradas de tirar a identidade e subjetividade que a protagonista manifesta em seu vestir, sua patroa lhe entrega um avental, comunicando então o lugar de subalternidade que ela deveria assumir.

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Reprodução de cena do filme Garota Negra (1966).Foto: Reprodução

As críticas raciais e sociais propostas por Sembène, um importante cineasta e roteirista do continente, o protagonismo feminino com pitadas de insurgências da personagem principal (precisa assistir até o final para entender), um figurino lindo e uma trilha sonora embalada aos sons da kora – instrumento tradicional de cordas tocado em países da África Ocidental como o Senegal -, nos contam sobre algumas das histórias do vestir e do viver de mulheres africanas, que assim como Diouana, talvez tenham avistado na Europa das décadas passadas, lugares promissores para um futuro melhor, mas que reservavam duros e tortuosos caminhos pela frente.

Hanayrá Negreiros é mestre em Ciência da Religião pela PUC-SP, costura e escreve ideias sobre negras maneiras de vestir.

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