Tenho um novo amor e ela se chama Carolina

Em busca do tempo perdido, sob a angústia da influência, Erika Palomino se vê atravessada pela literatura "em movência" da autora de Quarto de Despejo.


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“Eu sou igual a agua, se faz um dique impedindo seu curso, ela vae evoluindo-se e transpõe”.

Carolina Maria de Jesus

Há tempos ouço falar de Carolina Maria de Jesus. Quarto de Despejo, seu título mais conhecido e também livro de estreia, faz-se consagrada referência para a literatura brasileira mas, na minha branca ignorância, residia no lugar de registro de suas agruras na condição de moradora da favela do Canindé, em São Paulo, em meados dos anos 1950.

Fato é que o livro em si ainda não havia caído em minhas mãos. Lamento hoje, retroativamente até, que isso só tenha acontecido há pouco. Quanto tempo perdi sem Carolina.

Suas obras estão sendo relançadas pela Companhia das Letras e o Instituto Moreira Salles da Av. Paulista abre em setembro uma grande mostra acerca desta extraordinária mulher brasileira, que tem na curadoria a historiadora Raquel Barreto e o antropólogo Helio Menezes, amigo querido e brilhante, que vem entoando com sua fala deliciosa e baiana o nome Carolina Carolina Carolina em meus ouvidos. Carolina foi chegando perto.

Carolina não vem sem um tufão em torno de seu nome, em muitos sentidos. Antes de prosseguir preciso avisar quem chegou até aqui nesta coluna de linhas mal-traçadas que este artigo é, não somente uma ode, uma declaração de amor mesmo, de arrebatamento, e por este motivo me desprendo desde já de outras obrigações jornalísticas e biográficas. Ou também não conseguiria avançar. Quase não avancei.

Quis começar “pulando” Quarto de Despejo, indo direto para Casa de Alvenaria – Vol. 1 – Osasco, que conta de quando ela sai do Canindé, o primeiro dos volumes agora relançados pela Companhia das Letras. Achei que já sabia do que se tratava. Quis ir para “o Novo”. Mal sabia que o novo, em Carolina, está em cada respiro.

Depois, de volta, lendo tudo ao mesmo tempo, pude mergulhar numa das mais maravilhosas experiências literárias, como leitora e autora, essa que divido aqui. Não de forma protagonista, mas como afã, e como tentativa de convencimento para que cada uma ou cada um que eventualmente leia esta carta de amor tome para si um dos livros de Carolina.

Falo assim, chamando-a pelo primeiro nome, porque me sinto tão próxima que a sensação é que, virando a esquina, vou encontrar Carolina e dar um abraço bem apertado nela, um desses abraços pós-pandemia, que ficamos segurando a pessoa um tempão.

O atravessamento que (me) provoca a leitura de Carolina é semelhante, quer dizer, não, a outras epifanias que só a literatura nos proporciona. Quando li Clarice. Quando li Guimarães Rosa, quando li João Cabral e Fernando Pessoa. Fazia tempos que não sentia algo assim. Tal arrebatamento não se encontra no território do exotismo, do culto à pobreza ou da precarização, do desplante estupefato, ainda que a fome seja um dos mais tristes personagens do Quarto de Despejo.

Diante de Carolina, aos pés de Carolina, entrei no modo congelado. E da angústia da influência, tal qual definiu Harold Bloom. Como escrever sobre Carolina sem me fazer uma perfeita idiota? Como escrever sobre o sublime? E como escrever sobre a miséria? Só mesmo Carolina.

E ao escrever, como estabelecer sinapses além do nosso pouco humilde umbigo para atingir o estômago de quem me lê do outro lado do celular ou do computador? É preciso filtro para enxergar as coisas. “A gente tem que pensar lutando esforçando para prosperar-se.” Ensina Carolina.

Recomendo, como iniciação, o prefácio interessantíssimo de Conceição Evaristo (outro momento de perder o fôlego) e de Vera Eunice, filha de Carolina, tão presente na obra da autora. Evaristo fala da escrita “em movência” de Carolina, ressalta sua prosódia própria, aponta sua pontuação e ritmo, que tanto me desorientam. Nem sempre ou quase nunca se trata de leitura fácil, longe disso, porque mesmo quem procura pela forma se vê destrambelhada pela constatação de um Brasil desigual que insiste em ser o mesmo, da mesma sopa de ossos do cardápio de hoje na situação de “insegurança alimentar”, esse eufemismo contemporâneo, a que grande parte da população brasileira voltou a ser acometida no desgoverno atual. E vice-versa. Quem eventualmente for procurar pela voadora da verdade na cara vai se encantar com a doçura e as sintaxes de Carolina.

Porque Carolina escreve também sobre o sentido da vida, no senso mais cortante das questões. Ouvir suas revoltas, das estratégias de sobrevivência e as que encontra e produz para chegar à literatura – seu lugar maior -, a revelação de seus processos criativos, seu pretuguês (conforme nos ensina Lélia Gonzalez), sua candura, suas explosões, sua falta de paciência e sua resiliência, seus neologismos e aforismos, sua maneira única de enfrentar o cotidiano, na glória ou nem tanto, aproxima suas leitoras e leitores da convivência com a complexidade de seu temperamento e de sua existência. Como mulher, como mulher negra, como escritora – não só dos diários, mas de romances, poemas, peças de teatro e contos, agora chegando a público. Carolina é ímpar, única, absoluta. (suspiro)

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