Ultraje

Toalhas, pudores e pensamentos num dia quente em São Paulo.


ilustração coluna roberta
Ilustração: Mariana Baptista



Com a cabeça encostada na janela do táxi, aquela dancinha de testa e vidro, testa e vidro, Madalena está entre o cochilo e o calvário de repassar a conversa que teve agora há pouco com a chefe. São Paulo daquele jeitinho, quinta pré-feriado, chuvona, fim de tarde. O carro todo fechado, uma sauna úmida. Quando abre o olho, ela vê a gota de suor no pescoço do motorista no banco da frente. Um pescoço de quatro dobras. 

Ele cheio de freio, ela cheia de macarronada do almoço. Os dois, no vapor, há três minutos no mesmo farol. Aquele enjoo. Ele sentado em uma toalha que ou estava dobrada em quatro, que nem o pescoço, ou era uma daquelas de criança, quem sabe até de rosto. De qualquer forma não dava conta de um motorista inteiro. Ela numa dessas brancas, felpudas, que só seca o corpo depois de umas dez lavagens. Ele olhando pelo retrovisor como quem vai puxar conversa, ela fechando ainda mais o olho como quem vai fingir que não ouviu. Aquele enjoo. 

– A senhora não me leve a mal, mas sou homem de igreja. 

– An-han.

É essa a mesma queixa da chefe. “Não me leve a mal.” Disse que os colegas de baia desconcentram com os mantos e as toalhas longas. Madalena alegou frio. E vai fazer igualzinho agora com o motorista.

– A senhora pode descobrir a coxa, por favor?

– Olha, eu sinto muito frio. 

– Mas o carro tá um forno.

Ela puxa a toalha mais pra cima, cruza as pernas, até as canelas. Ele olha furando o retrovisor.

– A senhora tá indo longe demais. Ocultação de genitália de forma indecente e ofensiva é contravenção penal. Está no artigo 233 do Decreto-Lei nº 3.688 de 1941.

– O senhor é advogado? 

Simão, o motorista, era homem de igreja, mas não era advogado. Cursou os cinco anos de Direito e, na hora da prova da OAB, não lhe saiu um único número de lei, nem de decreto, não lhe saiu nem número, nem letra. Tentou por anos. E depois tentou concurso de técnico, tentou assessoria jurídica, tentou mediação, tentou tanta coisa. Não era uma desqualificada dessas que o faria perder as estrelas do aplicativo. As únicas que conseguiu ganhar até agora.  Já Madalena era um céu de São João, desde menina. Saiu do terceiro ano direto para a federal. Fez a prova da OAB no nono período. Não tinha nem terminado ainda. Foi um dia como outro qualquer, até sair na noite anterior ela saiu. Saíram também as leis, os decretos, os números e as letras. Passou. Como passa uma vontade ou uma vida. 

Madalena levou quatro segundos pra fazer a pergunta. Foi o tempo de Simão repassar todas as tentativas de entrar na faculdade e os 10 semestres, os 60 boletos, as provas, e as provas, e as provas. Enquanto viu sair o o-se-nhor-é-ad-vo-ga-do da boca, ela também assistiu aos estágios, ao primeiro dia no escritório, aos calos do escarpim, e aos prazos, e os prazos, e os prazos.

O pensamento de Madalena deslizou no vapor, rodopiou com o de Simão no meio do caminho e entrou no ouvido do motorista. Como se ele, o pensamento, com a ajuda do calor e da umidade, tivesse conseguido derreter toda a cera pra passar inteiro, completinho, pras dobras do cérebro de Simão. O dele fez o mesmo, invadiu Madalena de orelha a orelha. E, num meio segundo, Madalena e Simão abriram acesso ao que se passava na cabeça um do outro. Parecia uma briga de vizinho pra ver quem bota a música mais alta. 

– Uma vida nesse escritório, pra ser demitida por uma manta.

– Se vazarem as imagens pro aplicativo eu perco a licença.

– Pois que morra.

– Uma vida na direção, pra tomar desaforo de mulher coberta.

– Se esse cara frear mais uma vez eu vou vomitar.

– Pois se vomitar, eu mato.

Aos pensamentos se sobrepunham a chuva, as buzinas, o ódio e um Hyundaizinho, caindo os cacos, que se atravessou diante deles. Foi o tempo de Simão frear grandão e de Madalena ver aquela bunda sobrando da toalha escorregar quase que pro banco do passageiro. Bateram. O macarrão que já ia na garganta, foi da boca direto pras dobrinhas do pescoço dele. Um fio agarrou no outro e depois no próximo, formou uma linha comprida e teceu ali, ao vivo mesmo, um traje completo pra Simão. Desencostava o homem do banco e o agasalhava com uma gola rolê, blusa de mangas, calça e até cinto, ele todo coberto, enfeitado de glúten, molho de tomate e queijo ralado. Até que o último espaguete arrematou o look num sapato. Madalena esperou os carros pararem, enxugou a boca com o braço, abriu a porta, desceu e fez uma sainha de pano felpuda. Simão foi atrás. Os passageiros pelados do ônibus quase quebraram o pescoço pra acompanhar a cena, uma senhora cobriu os olhos da filha, o cobrador nem se deu conta de que estava de boca aberta, teve grito e assovio. A foto dos “vestidos da Rebouças” saiu em tudo que foi canto. Madalena e Simão, duas estrelinhas.

Roberta D´Albuquerque é psicanalista e co-autora do livro Quem manda aqui sou eu (HarperCollins). Atende no seu consultório em São Paulo e escreve mensalmente neste espaço. Acompanhe em @robertadalbuquerque.

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