Um dia na vida

Sobre essa canção dos Beatles, números e o livro do futuro


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I read the news today, oh boy…
(Eu li as notícias hoje, afe…)
The Beatles, “A Day in the life”

Era algum dia dos anos 90, o professsor Wilton tentava ensinar adolescentes a falar inglês. A letra de “A Day in the Life”, tradução, aquelas coisas. Conhecia dos discos do meu pai, das minhas preferidas, o que só fez aumentar meu crush teen platônico e silencioso pelo teacher barbudo de macacão jeans, um pós-hippie cheio de paciência e sensibilidade musical.

A música falava de tiros, guerra, suicídio. Mas nada disso me importava. Eu só ouvia a parte do sonho, alguém penteando os cabelos, imaginava um sótão de uma casa inglesa, a fumaça de um cigarro e aquele trecho de um grito cantado em a. Saí da aula numa brisa forte, fui pegar o ônibus de volta pra casa e senti mesmo que existia outra coisa além das ruas feias e das caras exaustas, algum mundo entre a música, a língua e a inspiração que era transmitida por pessoas de maneiras difíceis de explicar.
Penso nisso hoje, tomada pelo medo de encostar, de nunca mais encostar, o novo medo de encosto, fantasmagórico em vários sentidos. Tomo água, gengibre, remédio, desejo dormir e sonhar loucamente.

Quero férias do mundo, da estupidez das manchetes, da covardia das manchetes, dos homens das manchetes, quero distância da briga no supermercado com a senhora faladora de idiomas e que usava todos eles para ofender uma trabalhadora, quero pausa da raiva que sinto das gentes de elite que se fazem de defensoras da justiça quando bem convém ou quando já não existe alternativa, suas bocas cheias de dentes cheias de pele que andaram mordendo aqui e ali. Quero fechar os olhos e acordar num dia frio de sol fumando com uma mão e andando e comendo um doce com a outra mão na minha cidade favorita.

Quero subir e descer escadas de areia em um sonho de praia em que penteio meus cabelos como na música e queimo no sol sem ficar vermelha nem me machucar, um sonho de brisa sem foto no Instagram, sem o horror que vira e mexe me causam tantas fotos do Instagram com suas pessoas que certamente fugiram do Madame Tussauds, com seus cenários mortos-vivos, com sua beleza de vitrine, com suas dicas úteis, com seus pensamentos repetidos colados em tratados, petições, bundas, poltronas assinadas, dedos coreografados, pratos de comida, crias e caras pré-fabricadas, tanto faz, tanto faz.

Os números invadem meu sonho. Os números estão cheios de mortos lacrados em caixões numerados enquanto a besta sem número amaldiçoa o 17, o 2020, o 2021.Como nesses filmes e séries há uma sequência macabra que precisa ser brecada pelos heróis e ninguém sabe o que fazer até achar uma pista, ninguém sabe quem são os heróis ou se um herói é mesmo a melhor opção a essa altura. Acordo despistada.

O mundo segue, eu sigo além das manchetes e seus atores canastrões.

Ligo a música, a música me liga. Penso em mim e em você, um livro que ainda não li.

I’d love to turn you on.

Um beijo,
V.

Vivian Whiteman, jornalista e psicanalista, é editora especial da ELLE e escreve sobre moda, sociedade e comportamento.

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