O tapa

Sobre a treta do ano vai para...


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Ilustração: Mariana Baptista



As pessoas são engraçadas. Sempre tão certas de tudo, especialmente das suas qualidades superiores. Sempre tentando esconder suas vergonhas, suas baixarias, seus momentos menos brilhantes. Sempre encontrando nas atitudes discutíveis do outro uma forma de reivindicar sua própria correção.

O episódio do tapa cola-brinco de Will Smith em Chris Rock, eu sei, é uma oportunidade perfeita pra demonstrar militância em tantas instâncias que fica quase irresistível. Mas entre a militância, com consideração mais ou menos equilibrada das coisas, e o despejo moralista do mais puro chorume da hipocrisia há um abismo. E nada mais dado à safadeza abismal do que o oportunismo de rede social.

O tapa de repente vira essa coisa horrenda, inaceitável em absoluto, um intruso em um mundo de pessoas sempre muito sensatas e ordeiras, algo que só pode pertencer ao mundo dos escrotos, dos maus, dos bandidos. É como se alguém decente jamais pudesse guardar no peito a raiva, a capacidade para a violência, o tropeço, o sangue quente, a inconsequência.

Entre as pencas de absurdos lidos, por exemplo, no Twitter, um tapa, esse tapa, é colocado em pé de equivalência com violência de guerra, com terrorismo, com adesão à barbárie, com bolsonarismo, com cada coisa, gente, de arrepiar o cy do gato. Esses paralelos são de um maucaratismo, de uma irresponsabilidade, de uma desonestidade tão grande… É inaceitável uma coisa dessas, especialmente quando isso vem de profissionais que deveriam ter, ao menos, o mínimo de cuidado.

Até onde pude pesquisar, Will Smith tem seus defeitos, desafetos, mas não destila ódio por aí, não tem nenhum histórico de resolver questões na porrada, não ataca pessoas a torto e a direito, não tece odes à tortura, não comemora assassinatos nem nada que sequer chegue perto disso. Também não tem poderes de Estado, não agiu como “influenciador”, não representou um grupo. Ele saiu na mão com alguém num momento de raiva. Ou seja, a violência e o tapa não são a base, o fundamento nem o organizador da vida e das atitudes desse homem.

Não se trata de defender “o tapa”. Que, aliás, não é um soco. Dizer que há no mundo a possibilidade compreensível de que um ser humano agrida o outro ao se sentir atacado não equivale a dizer que liberou geral dar tapa. Chega a ser engraçado escrever isso porque dá conta do ridículo não-divertido que tem tomado conta de tudo. Da crescente onda emburrecedora que nos tira pouco a pouco a possibilidade da nuance, da escuta de um acontecido específico e de sua diferenciação em relação a um padrão, uma lei, uma apologia, uma estrutura, um universal.

As crianças do maternal têm muito a ensinar sobre isso. Elas sabem que a regra é não bater no amiguinho. E sabem também que isso pode acontecer de vez em quando. E que será exigido delas que peçam desculpas, que organizem um combinado de paz. Com mediação sensível, com boas palavras, elas logo se viram e são capazes de refazer o grupo. Elas entendem que aceitar de volta aquele que bateu em uma situação específica, de compreender a raiva, a frustração, o sentimento de se sentir agredido ou injustiçado, não quer dizer que está liberado bater, que bater virou a regra.

Adultos, evidente, têm outras ferramentas e recursos à disposição. Também podem sofrer consequências legais por seus atos agressivos. Mas parecem estar perdendo contato com os processos, parecem cada vez menos presentes, incapazes de analisar aquilo que vivem, escravos de um jogo onde a única alternativa possível é a falsa escolha entre o “botão” do like e o “botão” do hate.

Will Smith se sentiu atacado. Indiretamente, dirão, afinal, a piada de Chris foi com Jada Smith, sua companheira. Jada tem alopecia, uma condição que faz com que o cabelo caia. Ela então tirou os fios restantes e adotou um visual careca. Recentemente, falou sobre as questões com sua imagem e de seu sofrimento ao lidar com a alopecia, sua vaidade, sua tristeza, foi bastante aberta sobre tudo. E Chris achou que seria legal brincar com isso, dar uma tirada com a cara dela.

Não foi a primeira vez. Quando Jada e o diretor Spike Lee organizaram um boicote ao Oscar para brigar por mais protagonistas negros, Chris ironizou. Disse que Jada não ir à cerimônia era como ele não ir à “calcinha da Rihanna”, já que em ambos os casos se tratava de pessoas que não tinham sido convidadas. Disse também que Jada não deveria se importar com o Oscar, já que não tinha trabalhos no cinema.

Will estava feliz ali na frente, ele e Jada, focalizados satisfeitos antes da piada. Durante a piada Jada fecha a cara, revira os olhos. Porque certas coisas enchem o saco, cansam, enervam, machucam. E quando você ama alguém não é indiferente ao sofrimento da pessoa. Não só porque você não quer que ela sofra, mas porque de alguma forma isso também te atinge. Onde há vínculo, há alguma coisa que se compartilha.

Jada poderia se defender sozinha? Sim, como o fez na agressão anterior. Mas talvez não ali. Talvez ela não tivesse o ímpeto de se expor e bater boca durante uma cerimônia, no que certamente seria aplaudida mas também criticada, ridicularizada. Ser exposta diante de colegas, família e milhões de espectadores é pesado.

Aliás, choveram comentários sobre ela sequer “merecer” ser defendida porque teve um caso com outro homem quando o casamento dos dois estava em uma espécie de pausa de adaptação. Ou seja, pouco antes de se tornar um casamento aberto ou algo em seus próprios termos.

Por motivos que não conheço, Will e Jada tornaram pública essa discussão sobre seu relacionamento. Botaram no ar papos difíceis entre os dois, ambos falaram de histórias com outras pessoas, das dificuldades que tiveram. De como um casamento aberto não é solução nem garantia de nada, mas uma escolha. Uma que também inclui debates, dores e sofrimentos. De como o mito do casamento tradicional perfeito é nocivo e cruel em muitos sentidos. De como decidiram seguir juntos pelo companheirismo, pela construção de um amor, desse que eles puderam construir.

Ah, sim. E Will e Chris não deveriam brigar porque são dois homens negros em uma premiação como o Oscar. Faz sentido até certo ponto porque, de fato, a organização social e seu conjunto de opressões incentivam e se favorecem desse tipo de cena. Acontece que pessoas negras são seres humanos e, como seres humanos, têm de lidar com afetos e paixões. Não podem ser exemplares o tempo inteiro, e exigir isso é um disparate, uma covardia. Um absurdo do qual os racistas inclusive se aproveitam.

Will chorou, pediu desculpas, saiu com um Oscar na mão e o beijo de Jada, torta de climão na lancheira. Chris disse que vai sentir o tapa até agosto. Poderia, se quisesse, processar Will por agressão, por exemplo. Mas ao que parece, ele mesmo acabou incluindo o tapa no corpo de sua piada, como um complemento de sua lógica interna. Bem capaz que ele retome a cena, que ela vire em si algum compromisso, um acordo que cria limites e quem sabe alguma reflexão sincera, mesmo que bem-humorada.

A humanidade não está acima nem abaixo da violência, mas na investigação sensível e na transformação de suas condições. Não se trata, se me permitem, de tapar o tapa com a peneira.

Dito isso, e voltando ao humor edificante, o meme de We Will Rock You é sonora e conceitualmente brilhante. Tum, tum, pá.

 

 

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Vivian Whiteman, escritora e psicanalista, é editora especial da ELLE e escreve sobre moda, sociedade e comportamento.

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