Anna Muylaert fala sobre violência doméstica e amor materno em A melhor mãe do mundo
Novo filme da diretora de "Que horas ela volta?" reúne Shirley Cruz, Seu Jorge e Luedji Luna.
Diretora de Que horas ela volta? (2015), Anna Muylaert inspirou-se em uma experiência pessoal traumática para escrever e dirigir A melhor mãe do mundo, que acaba de chegar aos cinemas brasileiros, depois de sua estreia mundial no Festival de Berlim, em fevereiro.
Na trama, a catadora de materiais recicláveis Gal (Shirley Cruz) sai de casa com os dois filhos pequenos, Rihanna (Rihanna Barbosa) e Benin (Benin Ayo), para fugir da violência doméstica de seu companheiro, Leandro (Seu Jorge). A cantora Luedji Luna estreia no cinema como Val, prima de Gal, que a acolhe depois do abuso, embora acabe amenizando a situação de violência vivida pela protagonista. “Muitas mulheres negras crescem aprendendo a suportar. A violência, infelizmente, muitas vezes é tratada como parte do cotidiano, algo que se tolera, se varre para debaixo do tapete”, disse Luedji. “Valdete não é má ou omissa por maldade, mas porque ela também não aprendeu outra forma de lidar. E isso é muito real.”
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Assim como Que horas ela volta? e Mãe só há uma (2016), A melhor mãe do mundo é mais uma história de maternidade, que a diretora toca com sensibilidade, escapando dos clichês e fugindo da armadilha de gerar imagens que exacerbem a violência. Shirley impressiona desde a primeira cena, quando vai prestar queixa na delegacia, evitando os estereótipos. Ela está quebrada, mas sua Gal não cai no choro. Depois disso, ela alterna atitudes, de acordo com a necessidade. Na rua, coloca uma armadura. Com os filhos, é um doce, tentando esconder os perigos de cruzar São Paulo e dormir na rua como uma grande aventura. Shirley conta com duas atuações fabulosas dos atores que interpretam seus filhos, que tiveram liberdade para improvisar.
Anna e Shirley conversaram com a ELLE sobre A melhor mãe do mundo:
Por que você quis contar essa história?
Anna Muylaert: Eu estava querendo fazer uma história sobre relacionamento abusivo, porque tinha passado por isso e estava muito em choque por ter permitido muitas coisas. Quando caí em mim, pensei: Meu Deus, como? Fui entendendo que era uma maldição feminina geracional. Um dia, a Ana Flávia Cavalcanti, que é atriz e minha amiga, me contou sobre as carroceiras que trabalham na região central de São Paulo com as crianças na carroça. Resolvi juntar as duas coisas. Fiz uma pesquisa bem longa com essas mulheres.

Benin Ayo e Rihanna Barbosa, que interpretam Benin e Rihanna no filme
Por que tantas mulheres ficam em relacionamentos assim?
Anna Muylaert: Essa é uma pergunta muito complexa, mas com certeza o antídoto para isso é a mãe dizer não. Porque se uma mãe diz sim à violência, a chance de a filha fazer o mesmo é de 95%. Se a mãe não aceita abuso, a filha também não vai.
O filme trata de um tema muito delicado, mas não reforça a violência e oferece caminhos e solidariedade entre mulheres também. Por que quis falar disso dessa maneira?
Anna Muylaert: Como Que horas ela volta? teve muito impacto, entendi que a criação de novas imagens, não estereotipadas, pode gerar mudança. Neste filme, queria uma mulher que não cede, que pode passar por certas coisas e se levanta. Não queria que terminasse em desgraça. Desejava gerar essa imagem de uma mulher que pode ser mais forte do que o mal que tenta comê-la viva.
Seu Jorge e Shirley Cruz em cena do filme

Gal encontra refúgio na casa da prima, Val. Mas logo ela percebe que as pessoas ao seu redor minimizam a violência que ela sofreu.
Anna Muylaert: Isso veio da minha própria experiência. A prima defende o machismo, que é normalizado. Diria que a maioria das mulheres ainda está nessa frequência. A Val diz: “Como assim, vai se separar de novo?”. Só que quem aceita a violência vai acabar vendo sua filha sofrer a mesma coisa. O ponto fundamental para a Gal é quando ela olha para os filhos e vê que pode estar transmitindo isso para eles. Daí ela vira a melhor mãe do mundo.
“Se uma mãe diz sim à violência, a chance de a filha fazer o mesmo é de 95%” Anna Muylaert
A Gal é uma camaleoa, que age de maneiras diferentes conforme a pessoa com quem fala. Com os filhos, ela procura criar um universo lúdico, mesmo na situação em que está.
Shirley Cruz: É uma dádiva feminina dar um jeito, improvisar para seguir em frente. Eu tendo a ser muito firme. Essa mulher é muito silenciada, e a gente aguenta muita coisa calada. Precisava trazer isso.
O que aprendeu com as coletoras de recicláveis?
Shirley Cruz: Tanta coisa. Elas reforçaram a minha dignidade. Elas catam as coisas no lixo, mas, quando terminam seu trabalho, tomam banho, se arrumam e vão para casa. Não são todas que estão em situação de rua. A Gal não vive na rua, é temporário. Os filhos estão na escola. Fico feliz de poder desconstruir essa imagem que a sociedade tem dessas mulheres. Elas são responsáveis por recolher uma grande parte do lixo de São Paulo.

Shirley como a catadora Gal no filme
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A Anna disse que a maneira como você fez a primeira cena, na delegacia, foi a razão pela qual ela te escolheu para fazer a personagem. Gal está perturbada, com medo, mas não chora. Por que escolheu interpretar aquele momento dessa forma?
Shirley Cruz: A Gal ama aquele homem. Você denunciar o homem que ama… É uma mulher sem lágrimas, ressecada. O ator costuma querer atuar. É uma solução muito pronta para ele chorar, espernear. Para mim, não cabia. Minha proposta foi mostrar como ela estava perturbada, quebrada. A única coisa que a fez sentar ali na cadeira foi o amor pelos filhos. Ela não é uma coitada. A Gal é forte. O audiovisual muitas vezes mostra a violência, o corpo estendido no chão. Gosto como a Anna fez no filme.
Qual a importância de contar a história dessa mulher e mãe negra?
Shirley Cruz: Tenho certeza de que esse filme é uma grande contribuição, porque não acredito que possa haver o combate à desigualdade e à violência sem o audiovisual. A gente está aqui em um hotel chique, estou dando entrevista para a ELLE, enquanto tem mulher preta, branca, rica e pobre morrendo por causa da violência doméstica, sendo vítimas de feminicídio. O filme discute muitos temas e tem várias camadas. Um dia, vou embora. A Anna, também. A gente não tem certeza se o filme vai proteger a minha filha, a sua sobrinha. Mas alguém vai se sentar e ver o filme, refletir e agir.
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