Biografia de Ronaldo Fraga documenta coleções e discute o lugar da moda

Lançado na última edição da Festa Literária de Paraty (Flip), no fim de novembro, Memórias de um estilista coração de galinha (Autêntica) é um misto de biografia enciclopédica dos 30 anos de carreira de Ronaldo Fraga com reflexões sobre o lugar das roupas na construção de quem a gente é, de quem a gente quer ser e de como as pessoas nos percebem (com a ajuda do que vestimos) ao longo da vida.

Ainda que o início da carreira de Ronaldo Fraga, 56 anos, tenha sido marcado por anos vividos em Nova York (ele estudou na Parsons graças a um prêmio ganho num concurso de moda no Brasil) e em Londres (onde trabalhou e fez cursos na Saint Martins), tudo indica que ele deseje ser reconhecido como um artista que usa a moda e todo o seu apelo para contar histórias que evidenciam a cultura popular brasileira como fonte de inspiração de primeira grandeza para qualquer processo criativo de alta qualidade, seja ele um prédio, um quadro ou uma coleção de roupas.

“Na obra de Ronaldo Fraga, mostrar através de fragmentos narrativos permite realizar uma escrita de natureza visual e espacial. Por meio dessa escrita, ele criou um modo próprio de narrar o Brasil, a partir do lugar onde se constitui a fronteira entre os diferentes territórios da cultura que formam a imaginação brasileira”, afirma a historiadora Heloisa Murgel Starling, que assina a apresentação do livro.

Depois do texto de Heloisa, o livro passa a ser organizado em blocos de entrevistas feitas ao longo de uma década pela jornalista Sabrina Abreu, coautora da publicação, ao lado de Ronaldo. Foi dela a ideia não só de escrever a biografia mas também de organizá-la desta maneira, inspirada pelo livro Conversas com Woody Allen, que reúne entrevistas realizadas pelo autor, Eric Lax, durante 36 anos com o cineasta.

“Eu me levei pelas circunstâncias. Sabia desenhar e com isso pagava minhas contas, já tinha a minha independência, e fui me aprofundando e lendo sobre isso. Fui lendo moda em tudo. Vi a moda em Machado de Assis e em Guimarães Rosa.”

Em formato de pergunta e resposta, editada de maneira naturalista (com interjeições e linguagem informal), a história da vida e carreira de Fraga tem início então com uma longa entrevista, em que ele conta sobre a infância vivida em Belo Horizonte, a morte prematura da mãe, de câncer, quando ele tinha 6 anos, seguida pela do pai, quatro anos mais tarde. A convivência afetuosa de companheirismo com os quatro irmãos, a elogiada educação na escola pública de Belo Horizonte na época, e a relação a princípio de incômodo com as roupas (por serem na maioria das vezes doadas, eram grandes demais) estão nessa primeira parte.

O estilista conta que, quando criança, não se interessava pelo universo da moda: gostava mesmo era de desenhar. Aos 7 anos, depois da classe assistir a uma peça sobre o patinho feio, todos os alunos foram convidados a fazer um desenho. Quando a professora viu o do estilista, se surpreendeu. “’De onde você tirou que o pato estava vestido?’. Falei: ‘Ele colocou uma roupa nova e se transformou em cisne’. Pelo burburinho que causou na escola – fui a outra classe mostrar, colocaram o desenho na porta da minha sala – foi, sem dúvida, o meu primeiro grande estímulo”, afirma o estilista.

Mais tarde, ele viria a trabalhar como desenhista em lojas de tecido de Belo Horizonte para depois se formar em moda na faculdade de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). “Eu me levei pelas circunstâncias. Sabia desenhar e com isso pagava minhas contas, já tinha a minha independência, e fui me aprofundando e lendo sobre isso. Fui lendo moda em tudo. Vi a moda em Machado de Assis e em Guimarães Rosa.”

Seguindo o modelo do livro de Woody Allen, que tem um capítulo dedicado a cada filme que ele dirigiu, em Memórias de um estilista coração de galinha há também um capítulo para cada uma das quase 50 coleções criadas por Ronaldo Fraga desde Eu amo coração de Galinha, desfilada em 1996 no Phytoervas Fashion, até Zuzu vive!, de 2020, a segunda coleção inspirada na estilista Zuzu Angel. Entre elas, com uma ou outra exceção, os temas foram sempre brasileiros, interpretados sob um olhar pessoal e afetivo. Nara Leão, Carlos Drummond de Andrade, o rio São Francisco, Athos Bulcão, Bispo do Rosário: todos viraram histórias contadas por meio de roupas, frases bordadas em tecidos, cenários e modelos ora velhos, ora gordos, baixos ou de alguma maneira fora do padrão de beleza da moda. Isso bem antes da era necessária de inclusão de corpos diversos na passarela brasileira – mas não antes de nomes internacionais como Vivienne Westwood e Jean Paul Gaultier colocarem punks, gordos, velhos e prostitutas em suas passarelas nos anos 1970 e 1980, respectivamente (o que não invalida o grande valor das escolhas de Ronaldo, apenas para dar contexto no quesito “pioneirismo”).

“Vejo que o que eu gosto é de escrita, a escrita não é a da letra, pode ser a partir do desenho, da história pessoal de alguém. Na moda, não deixa de ser fascinante”

Depois de 30 anos como estilista, Ronaldo diz que sua paixão mesmo são as palavras. “Vejo que o que eu gosto é de escrita, a escrita não é a da letra, pode ser a partir do desenho, da história pessoal de alguém. Na moda, não deixa de ser fascinante”, diz, numa passagem do livro. Em outra, volta a se emocionar com o ofício pelo qual se consagrou. “A história da roupa como conquista amorosa do outro, do seu corpo, seu tempo e, principalmente, uma conquista amorosa com esse personagem que você está criando é e sempre será uma referência. A roupa tem essa mágica e espero que não perca nunca.”