Há clima para festivais de música em 2024?

Faça chuva ou faça sol: grandes eventos, como o Lollapalooza, precisam repensar suas fórmulas, de olho nos eventos climáticos.


Montagem com Taylor Swift e frequentadores de festivais de música sofrendo com o calor e chuva forte



Depois de um 2023 caótico, com grandes eventos musicais impactados pelas mudanças climáticas extremas, e às vésperas de mais uma edição do Lollapalooza São Paulo (22, 23 e 24 de março), o público do festival – cerca de 100 mil pessoas por dia – já sabe: capa de chuva faz parte do look obrigatório.

Afinal, tempestades e ventos fortes, que provocam até cancelamentos de shows, não são exatamente raros no Lolla, com as águas de março fechando o verão. Que o diga o rapper Rashid, que teve duas apresentações canceladas por razões climáticas, em 2019 e 2022, e só conseguiu subir ao palco no ano passado.

Quando não é a chuva ou o vento a atrapalhar a música, pode ser o calor: durante o Carnaval, Pabllo Vittar e Ludmilla tiveram os seus blocos encerrados em São Paulo e no Rio de Janeiro, respectivamente, após dezenas de pessoas passarem mal com as altas temperaturas.

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Fãs enfrentaram calor nas apresentações de Taylor Swift, no Rio de Janeiro, em novembro passado Foto: Tercio Teixeira /AFP via Getty Images

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E o histórico climático de shows e festivais do ano passado fala por si só: a trágica morte da estudante Ana Clara Benevides por conta do calor, no início de uma das apresentações de Taylor Swift no estádio do Engenhão (Rio de Janeiro), em novembro, se transformou num caso emblemático. E chamou a atenção das autoridades para a responsabilidade dos organizadores em garantir segurança ao público pagante – com a morte de Ana, começaram os relatos sobre a proibição para entrar no estádio com garrafas de água, além da colocação de tapumes em espaços destinados à circulação de ar.

Responsável pela turnê de Taylor no Brasil, a T4F alegou ter seguido “as melhores práticas de organização de eventos, incluindo todas as exigências das autoridades, como a distribuição de copos de água e a permissão para entrar com copos de água descartáveis sem qualquer limitação de quantidade no dia do show. A empresa reitera, como tem feito desde o ocorrido, que lamenta profundamente a perda de Ana Clara, e que ela foi prontamente atendida por socorristas e encaminhada em uma ambulância UTI, acompanhada por médicos, até o hospital para que pudesse receber atendimento”. Um mês depois, no Primavera Sound, em São Paulo, realizado pela TF4 também, era possível ver bebedouros e distribuição gratuita de água e protetor solar.

“Será que hoje um profissional do clima não deveria fazer parte da estrutura das empresas?”, Marcelo Rocha, diretor do Instituto Ayika

Antes da tragédia no show de Taylor Swift, vale lembrar, as temperaturas altas já haviam castigado em 2023 quem esteve no Coala Festival (em setembro, em São Paulo/SP) e no Rock the Mountain (em novembro, em Petrópolis/RJ). A chuva forte, por sua vez, forçou mudanças na ordem de apresentações do line-up do Doce Maravilha (em agosto, no Rio de JaneIro/RJ), provocou paralisações de shows e aglomeração do público em áreas cobertas no primeiro dia do The Town (em setembro, em São Paulo/SP), e cancelou um dia inteiro do Tomorrowland (em outubro, em Itu/SP) e do Rep Festival (em outubro, no Rio de Janeiro/RJ) – quem não se lembra do vídeo de uma cobra circulando em meio à lama e ao público no Rep? A chuva ainda deixou milhares de pessoas ilhadas em pleno deserto de Nevada (EUA), onde aconteceu o Burning Man em setembro.

Mas o que esperar em 2024 dos festivais de música?

Diante desse cenário, de que forma as grandes produtoras estão se preparando para lidar com o clima nos eventos deste ano? A ELLE solicitou entrevistas com a Live Nation, Rock World (Rock in Rio, The Town e Lollapalooza), 30e (Mita e Ultra Festival, entre outros) e organizações do Coala Festival e MECA, mas teve os pedidos negados ou não respondidos.

A T4F (Primavera Sound e Turá, entre outros grandes eventos) enviou uma nota assinada pelo CEO, Serafim Abreu, em que afirma “realizar o monitoramento das condições meteorológicas de hora em hora, tanto pré quanto durante seus eventos”, e instalar os já citados pontos de hidratação e distribuição de água gratuita em shows e festivais. Mas reconhece que cabe aperfeiçoamentos. “Entendemos que todo o setor precisa repensar o modelo diante de uma nova realidade climática, com o necessário envolvimento das autoridades competentes. Temos o compromisso de participar dessa discussão e de contribuir para que possamos juntos melhorar as práticas da indústria como um todo.”

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Tendas entre poças e lama no festival Burning Man, em setembro passado. Milhares de pessoas ficaram isoladas no deserto, em Nevada (EUA), após fortes chuvas Foto: David Crane/Picture alliance via Getty Images

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Luiz Restiffe, sócio-diretor na Agência InHaus, que organiza festivais de música como o Nômade (maio, São Paulo/SP) e o Sons da rua (outubro/São Paulo/SP), além de Ensaios da Anitta e Bloco do Silva (ambos em janeiro, em São Paulo/SP), também vê a necessidade de uma discussão estruturada, que envolva todo o setor. Hoje, afirma, os eventos da InHaus são planejados considerando informações de institutos de meteorologia e com reuniões para a elaboração de planos de contingência. “Por exemplo, avisos de saídas de emergência nos telões, sinalização de rotas de fuga, bem como treinamento de todo o staff para ações imediatas que devemos tomar para que todos estejam seguros.”

Além do copo reciclável e da água gratuita

Para além da água de graça, da capa de chuva ou de eventuais mudanças dos horários dos eventos, evitando, por exemplo, sol a pino, sem políticas públicas não vamos conseguir resolver o problema, avaliam os especialistas ouvidos por ELLE. “Acho que a gente teve um avanço em 2023, quando a ministra da Cultura, Margareth Menezes, participou da COP 28 (Conferência das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima). Foi a primeira vez que um ministro de cultura foi até uma conferência de clima fazer um acordo em que o Brasil é líder para pensar políticas climáticas para cultura”, avalia Marcelo Rocha, diretor do Instituto Ayika, organização que pensa o clima através de raça, territórios e culturas.

O ativista climático acredita que a construção deve ser coletiva e começar pela prevenção. “É preciso aplicar multas, deve haver fiscalização, mas temos que construir antes um lugar de adaptação, não só punir”, diz. Como a gente adapta e repensa essa construção para os próximos anos? Rocha aponta alternativas: “Há caminhos possíveis, que não são caros e são adaptáveis. O Numanice, (bloco e show) da Ludmila, distribuiu água grátis e no Cena 2k23 (festival de rap em São Paulo) também vi isso. Mas água é um direito básico. Os festivais deveriam distribuir capas de chuva para as pessoas, repensar a estrutura, cobrar as cidades-sede para serem adaptadas e terem planos de mitigações em relação à mudança do clima”. E continua: “No caso específico da Taylor Swift, a gente tinha como prever. Sabemos que é um período do ano em que ocorre calor e que o El Niño estava chegando. Será que hoje um profissional do clima não deveria fazer parte da estrutura das empresas?”, questiona.

“Todos os eventos estão suscetíveis a condições climáticas que ninguém controla”, Dani Ribas, consultora na área de cultura.

“A sustentabilidade, de tanto que a gente usa essa palavra, se desgastou e virou sinônimo de copo reciclável”, diz Dani Ribas, diretora da Sonar Cultural Consultoria. Atuando na indústria da música há 25 anos e consultora na área da cultura, ela vê marketing em muitas das ações realizadas. “Todos os eventos estão suscetíveis a condições climáticas que ninguém controla. Mas qual deles efetivamente está engajado numa narrativa que una a causa da cultura à causa do planeta? Vários festivais já foram pegos muitas vezes reproduzindo trabalho análogo à escravidão. Como uma empresa que tem essas práticas vai pensar na questão climática?”

A professora, colaboradora do Circuito Amazônico de Festivais, que reúne oito festivais independentes, cujo intuito é atuar de maneira sustentável, integrando cultura e território, ressalta ainda a importância de os organizadores dos eventos pensarem nas questões de resíduos e emissões de carbono. “Na Europa, você tem um movimento fortíssimo que mede a pegada de carbono dos festivais como um todo. Aqui, a gente só tem os copos retornáveis.”

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Eles rodam o mundo: Chris Martin, vocalista do Coldplay, em apresentação da banda em Perth (Austrália), em novembro passado Foto: Matt Jelonek/WireImage/Getty Images

Coldplay, uma banda sustentável

Perder em biodiversidade também é perder cultura, defende Rocha, lembrando um episódio recente que envolveu o Festival de Parintins (AM). “Tivemos uma seca gigante no Amazonas (em 2023), que impossibilitou a viagem de torcedores do Boi Caprichoso. Não foi possível transportar as pessoas de Manaus a Parintins, porque não tinha mais rio. O mesmo aconteceu com a Oktoberfest, em Santa Catarina, que também é parte da cultura daquele povo, e foi prejudicada por ciclones (no mesmo ano).”

Na outra ponta da questão, festivais independentes, que têm papel importante na construção da cena musical nacional fora do mainstream e muitas vezes funcionam sem patrocínio, acabam sendo muito impactados. “É caro construir um festival sustentável, que consiga abranger todo mundo da mesma forma. Nos grandes festivais, o pessoal do camarote vai conseguir assistir tudo em meio à chuva, em meio aos eventos extremos. Mas tem outra parte que não vai. E, ainda que tenha acesso, talvez não consiga voltar para casa se tiver uma enchente, por exemplo”, ressalta Rocha. “Um festival se constrói através de tudo o que está ao redor. Se a gente não cuida da mobilidade urbana, do preço, da forma como cria tecnologias sustentáveis para isso acontecer, terminamos reduzindo o nosso festival para um público só.”

O ativista finaliza citando o exemplo do Coldplay na construção de um futuro nos palcos e gramados menos caótico. “É a única banda do mundo que tem um plano de sustentabilidade próprio. São 17 objetivos (normas a serem seguidas), que vão desde só comprar comida de fornecedores locais a construir a estrutura também com trabalhadores que fazem parte daquele território. O palco inteiro cabe em um caminhão. Tudo isso faz parte de uma política de sustentabilidade que se constrói.”

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