Erika Palomino lança edição atualizada do livro Babado Forte
25 anos após a primeira edição, a jornalista, autora e curadora Erika Palomino fala sobre a versão ampliada de seu Babado Forte, um valioso registro das manifestações socioculturais no Brasil a partir das pistas e da música eletrônica.
“Muita gente fala que é um livro sobre a noite, mas talvez não seja”, diz Erika Palomino. Ela se refere à edição ampliada e atualizada de Babado Forte (Ubu). Não que a interpretação seja errada. Lançada originalmente em 1999, a publicação cobria a cena noturna – e tudo que se manifestava a partir dela – em São Paulo e no Rio de Janeiro desde 1989. À época, Erika assinava, no jornal Folha de S. Paulo, a coluna Noite Ilustrada, responsável por documentar e amplificar as movimentações culturais que entravam em ebulição nas pistas. Então, sim, de certa forma, é sobre a noite. Mas não só. “É um livro sobre o tempo, sobre o Brasil, sobre o corpo, sobre amizade.”
Em estilo reportagem, a primeira versão compilava as experiências observadas e/ou vividas pela jornalista. A segunda continua norteada pela prática jornalística, porém com uma maior multiplicidade de vozes. “Tivemos uma equipe de pesquisa gigante, muito plural, diversa”, comenta a autora. A abrangência das reportagens também cresceu. Não mais limitada ao eixo Rio-São Paulo, agora engloba cenas e artistas de capitais como São Luís, Belém, Manaus, Recife e Salvador.
Teresa Manicongo Jabutt, filha da Casa Jabutt, indígena do povo Puri, na ball Espíritos Ancestrais. Foto: Juliana Pesqueira
Leia mais: A relação entre música eletrônica e moda
Na virada do milênio, o Babado Forte já previa que as paredes dos clubes não seriam capazes de conter as manifestações que entraram em ebulição dentro deles. Vinte e cinco anos depois, o livro oferece um registro precioso do que acontece para além delas. São relatos ricos de como artistas locais responderam às influências estrangeiras e contextos nacionais para transformar a realidade underground brasileira: do tecnobrega ao eletropagode, da pisadinha ao brazilian bass, das aparelhagens aos bailes funk.
“Com o passar do tempo, a tiragem inicial de 10 mil cópias se extinguiu e os causos ali contados tornaram-se lembranças, quase lendas, ecos de longínquos fins de semana. Em paralelo, as novas gerações começaram a se interessar por tudo aquilo e por suas origens, num chamado necessário, diante dos desafios do presente. Era chegada a hora de uma reedição – o que a efeméride dos 25 anos propiciava – à luz das questões de hoje”, escreve Erika, no prefácio da nova edição.
A seguir, Erika Palomino divide mais alguns babados fortes:
Não é exatamente um livro sobre a noite, mas podemos dizer que a música eletrônica serve como fio condutor?
No livro, escrevo que a música eletrônica é uma língua franca. Acho essa expressão linda, uma língua franca para a juventude do mundo inteiro. Com ela, pudemos ser entendidos no mundo inteiro. Não é uma linguagem oral, tem a ver com o corpo. Por isso, falo que é um livro sobre o corpo.
A tecnologia é outro denominador comum. Os avanços tecnológicos e os acessos que vieram com a evolução da internet estão muito presentes no texto. Existem vários relatos de como a tecnologia impactou a maneira como as pessoas se relacionam, se expressam, como se faz, consome e compartilha música…
E como se toca também. Tem aquela parte, que é um pouco mais técnica, mais “cabeçuda”, sobre tecnologia. Quis deixar bem evidente: “olha, em 2024 é assim que se toca, é assim que se ouve, é assim que se consome, é assim que se dança”. O livro documenta e testemunha a passagem do analógico para o digital em todos os aspectos, em todas as áreas. Desde a cobertura da moda, o jeito como a gente se vestia para sair até como a gente paquerava, falava. Tem alguns relatos do tipo: “puxa, antes das redes sociais, dos aplicativos, a gente tinha que sair para saber o que estava rolando com as pessoas, o que elas estavam fazendo”. Se você não saísse, não saberia para onde ir, o que havia de novo. Era época dos flyers. Você pegava ou recebia um no meio da noite e aí descobria o que fazer. Não tinha para onde ligar, era só telefone fixo em casa. Eram outros tempos. Com esse recorte de 25 anos, é de fato um registro para as próximas gerações saberem como a gente vivia.
A lendária Kaká di Polly. Foto: Fabio Mergulhão
Como foi o processo de revisão, edição e atualização do Babado Forte?
Peguei a versão original e melhorei algumas estruturas de texto, de construção de frase, de tempo verbal, mas tentei preservá-la da melhor maneira que pude. Deixei até coisas que não acreditava ter escrito, que hoje vejo como ingenuidade ou deslumbre. Acho que ajuda a apontar o próprio tempo, não só das coisas, mas também o meu. A nova edição segue a mesma cronologia, porém de forma espiralada, como nos ensinou a professora e escritora Leda Maria Martins. É um pensamento muito atual sobre cultura, produção cultural e sobre a vida. As coisas, principalmente para a geração nativa digital, não estão compartimentadas. Não existe mais a divisão entre online e offline. É uma coisa só. Então, quis provocar essa ideia de que tudo acontece de forma simultânea, de que o que acontece numa área se reflete na outra.
Você sempre gostou de dança, o interesse pela cena noturna tem alguma relação com isso?
Tem essa ideia em torno do corpo, do movimento e da música. Cresci com muita música em casa, fazia parte do ambiente. Também sempre gostei de dançar, fiz aulas quando era criança, sou fascinada por isso. Mas a experiência determinante foi na minha adolescência. Eu frequentava um Roxy Roller (aquelas pistas de patinação) aqui no Rio que ficava ao lado dessa boate gay, o Papagaio. Não sei bem por que motivo, se cheguei cedo, fiquei curiosa, mas de alguma forma consegui entrar lá. E aí, a porta se abriu – literalmente. Lembro da sensação de ver o estrobo, a luz girando, a energia da pista – e uma pista gay, com todo mundo dançando, superalegre. Essa é uma imagem que tenho com muita vivacidade na minha mente. Talvez tenha sempre procurado repetir essa sensação a cada pista que fui.
Como essa sensação virou cobertura jornalística?
Eu fui mãe muito cedo. Com 18 anos tive meu primeiro filho e o segundo, com 20. Então, não saía muito. Fui a uma ou outra festinha com 15 anos, mas não tinha uma frequência de vida noturna. Na verdade, fiz as coisas um pouco ao contrário. Só comecei a sair depois que meus filhos cresceram e já estávamos morando em São Paulo. Então, meu olhar para tudo o que estava acontecendo ali era de muito frescor, de muita novidade. Foi a abertura para mundos muito diferentes do que eu vivia e já tinha vivido.
Como já trabalhava como jornalista, consegui perceber sistemas políticos com códigos bem definidos naqueles ambientes. As pessoas falavam de um jeito específico, se comportavam de determinada maneira, existia toda aquela política social, as hierarquias em torno dos DJs, dos promoters, das celebridades, das roupas, de como se vestir. Comecei a fazer reportagens meio naquele formato de como vivem, onde vão, o que fazem, e levei para o jornal. A Folha sempre foi receptiva para esse tipo de conteúdo. Tinham pessoas ali que enxergavam aquilo como manifestação cultural e social. Eles já tinham coberto as danceterias do final dos anos 1980 e início dos 90. Madame Satã, Rose Bom Bom já apareciam nas páginas do jornal, então não era algo estranho.
Abel Yina em performance a Festa Até as 4, em 2022, no Rio de Janeiro. Foto: Pedro Pinho
Pegação no Rio de Janeiro nos anos 2000. Foto: Victor Curi
Leia mais: O retorno das party girls
E da coluna para o livro, o que rolou?
Em meados dos anos 1990, quando a coluna já tinha decolado – ela começou circulando na Grande São Paulo em 1992 e em 1994 ganhou circulação nacional – percebi que tinha muita gente chegando ali naquele momento e fiquei com vontade de fazer uma compilação das melhores notas. Comecei a reunir o material e vi que existiam buracos entre uma nota e outra — elas já eram absurdas em si, sem contexto, ficavam muito mais surreais. Percebi que precisava, sim, contar uma história mais completa. Fiquei escrevendo entre 1996 e 1999. Foi um livro que demorou três anos para ser feito.
A nova edição demorou quanto?
Dois anos. Dei o start oficial em novembro de 2022.
Um ano a menos.
E eu pretendia fazer em só um ano, olha que ingênua. Pensei que passaria rápido por algumas coisas, mas não deu. Se no primeiro livro queria sempre incluir mais uma festa, nesse queria incluir mais uma pessoa.
A Up and Coming Legend Imperatriz Patfudyda. Foto: Gabe Arnaudin
A cobertura da coluna Noite Ilustrada foi bastante pioneira. Hoje, como você enxerga a maneira como as manifestações culturais e sociais são comunicadas?
Acho incrível a documentação feita pelas próprias pessoas, com suas próprias curadorias. Isso nos permite estar em muitos outros lugares. Um dos motivos do sucesso da coluna, principalmente quando surgiu, na era pré-internet, era que ela servia como uma janela para outras formas de vida: todas aquelas coisas que as pessoas faziam, que nós fazíamos, que eu fazia, mas que ainda não eram tão comuns. Tinha um valor enorme por causa disso. As pessoas até podiam ler e pensar: “Poxa, não entendo nada do que está escrito aqui. Mas peraí, deixa eu ver se na semana que vem eu entendo”. Assim, elas foram se acostumando com as gírias. O Brasil foi se acostumando com tudo aquilo. Agora, do conforto do celular, no sábado à noite, você vê o que as pessoas estão causando mundo afora. E isso é incrível, é delicioso. Também é irreversível e uma oportunidade fantástica – o que não substitui a presença física. O livro fala muito sobre incentivar os encontros e reforçar o poder da presença. É um livro pós-pandêmico, então ele quer provocar esse encontro.
Além da pandemia, nos 25 anos desde a publicação original, passamos por acontecimentos sociopolíticos que, junto às transformações digitais, mudaram profundamente a maneira como as pessoas se relacionam, se expressam e enxergam o mundo. Na primeira edição, por exemplo, a cena do Hell’s é descrita como apolítica. Hoje, sabemos que não era bem assim. Como foi a revisão e abordagem política no processo de atualização dos textos?
Apolítico talvez no sentido de apartidário. Mas ali eram exercidas várias manifestações de gênero, de raça, de território, que são essencialmente políticas. De 2000 para cá, o livro narra bem como e quando a diversão se tornou política na ocupação das ruas. Muito influenciados pelas jornadas de 2013 e pela Revolta da Lâmpada, temos vários relatos sobre o que estava acontecendo naquele momento e como manifestações da cultura jovem de todo o Brasil reverberaram na cena noturna, nas festas e na produção cultural do país.
Banheirão d'A Torre. Foto: Paulo Batalha
Katia Miranda, na porta do Sra. Krawitz em 1993, com look da estilista Sonia Ushiyama. Foto: Claudia Guimarães
Leia mais: Conheça as pioneiras da música eletrônica
O boom da cena eletrônica nos anos 1990 coincide com um momento muito criativo na moda brasileira. Qual é a relação entre esses dois movimentos?
Tenho pensado bastante na ideia da pista de dança, mais do que a do clube. Acredito muito nessa ideia de uma pista que reúne esse pensamento utópico de uma vida no presente, compartilhada. Esse ambiente é muito libertador. E foi especialmente libertador naquele momento (anos 1990), em que havia muita repressão às individualidades. De certa forma, os clubes protegiam as pessoas. Também eram lugares mais permissivos, no melhor sentido da palavra. A gente podia experimentar mais: quero beijar menino, quero beijar menina, hoje quero isso, amanhã quero aquilo. Nessa experimentação que estava em curso, cabia a expressão de individualidade também na forma de se montar para ir às festas. O jeito como as pessoas se vestiam era um exercício de individualidade.
Naquele momento, a moda brasileira estava completamente destruída pela sequência de planos econômicos. As confecções, as tecelagens estavam destroçadas. Estava tudo muito difícil. A retomada veio dos estilistas que mostravam suas coleções nos clubes noturnos para vestir seus amigos e amigues (na época, nem se usava a palavra amigues).
Outro motivo pelo qual acho que é tão pertinente esse livro ser reimpresso e revisto é que existem similaridades temporais que vão muito além do hype da volta dos anos 1990 ou dos anos 2000. Há coincidências de fatores, de elementos, de acontecimentos. É interessante olhar em retrospecto para entender o que estamos fazendo de novo e o que não queremos mais. Entender onde queremos chegar e de que maneira.
Performance na Festa Até as 4, no Rio de Janeiro, em 2022. Foto: Pedro Pinho
Você encerra a primeira edição do Babado Forte fazendo uma previsão — bem acertada — de como a produção cultural e a música eletrônica se entrelaçariam cada vez mais com elementos nacionais. Agora, com mais 24 anos incluídos no livro, quais são suas apostas para o que está por vir?
Minha aposta é nas pessoas, na energia delas. As principais pistas para sua pergunta estão na lista de nomes que mistura gente da moda e da produção de imagem com todos esses novos imaginários e personagens da cena LGBT+, das festas de rua que estão fazendo um ativismo que não é só de internet, mas cuja própria existência é política. Essa interseção é a verdadeira energia dos próximos tempos. Foram essas pessoas que renovaram meu interesse não só sobre esse mundo, mas sobre a minha relação com elas, sobre querer me conectar a coisas diferentes das que estava fazendo.
Leia mais: Na onda dos anos 2000, é mais do que hora de lembrar de Caio Gobbi
Para ler conteúdos exclusivos e multimídia, assine a ELLE View, nossa revista digital mensal para assinantes