Livro passa a limpo a noite eletrônica de São Paulo
"Bate-estaca: como DJs, drag queens e clubbers salvaram a noite de São Paulo", de Camilo Rocha, resgata três décadas de pistas da cidade.
Há dezenas de livros sobre a música brasileira, da bossa nova ao rock, passando pelo samba. Mas ainda são poucas as publicações sobre a cena eletrônica nacional. Há uma pesquisa sobre a figura do disc-jóquei, com Todo DJ já sambou (2003), de Claudia Assef, um registro da cena noturna paulistana em Babado forte: moda, música e noite na virada do século 21 (que ganhará em outubro uma edição atualizada e ampliada), de Erika Palomino, além de outros mergulhos em cenas locais, como O mundo funk carioca (1988), de Hermano Vianna, e Tecnobrega: o Pará reinventando o negócio da música (2009), de Oona Castro e Ronaldo Lemos.
Os dois primeiros ganham a companhia de Bate-Estaca: Como DJs, drag queens e clubbers salvaram a noite de São Paulo (Editora Veneta), de Camilo Rocha, DJ, jornalista e colaborador da ELLE. Testemunha e cronista dessa noite paulistana, ele vinha esboçando o livro desde o início dos anos 2000. “Certamente alguém vai dizer: ‘Ah, mas por que ele não está falando tanto desse ou daquele?’. O livro tem um ângulo muito pessoal, muito relacionado às coisas que vivi”, conta o autor.
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Em vez de períodos ou subgêneros da música eletrônica, Camilo dividiu o livro em capítulos dedicados a clubes que se revelaram de alguma forma pioneiros na cidade. “O Nation foi, obviamente, o primeiro clube. Depois, a Sra. Kravitz foi um embrião das drag queens (em São Paulo). A Sound Factory foi pioneira da Zona Leste. O Hell’s foi o primeiro after hours…”, exemplifica.
Com esse recorte, Camilo vai do centro à periferia, do drum’n’bass ao psytrance, dos clubs pequenos ao surgimento das raves e megafestivais que São Paulo recebeu, relembrando protagonistas e comportamentos da cena. Mas também faz incursões a Chicago ou Londres para explicar a gênese da house ou do acid house, respectivamente. “Em vez de ser um livro só sobre a cena paulistana, procurei fazer pontes com o que estava acontecendo lá fora. Acho que é um contexto que ajuda também a entender a história daqui.”
O próprio autor foi ver de perto o que estava acontecendo lá fora. Filho de uma inglesa, morou em Londres entre 1993 e 1996, onde acompanhou a explosão das raves. Camilo lembra de ver ao vivo nomes como Prodigy, Chemical Brothers e Underworld – que se apresentaram no Brasil nos anos seguintes –, além da ascensão do jungle nas rádios piratas inglesas.
O autor, Camilo Rocha Foto: Gabriel Cintra
Deboche
Voltando à capital paulista, o jornalista analisa o DNA da noite da cidade. “Acho que São Paulo sempre foi deslumbrada com as coisas de fora. É cosmopolita e caipira ao mesmo tempo. Isso era muito forte nos anos 80 na cultura alternativa ou na parcela mais intelectualizada. Se você ia para uma balada, na maior parte do tempo estava tocando música estrangeira. Mas é quase inevitável que a cena ganhasse um sotaque local, literalmente, às vezes”, reflete. “No Nation e nesses primeiros lugares clubbers, começou a se formar uma linguagem e gírias clubbers que vinham do inglês e até hoje são usadas. Líamos nas revistas gringas que uma coisa era um flop (fracasso) e adotávamos. Talvez a nossa cena fosse um pouco mais debochada, mais divertida. Às vezes, o europeu se leva muito mais a sério, não tem esse humor.”
“No Nation e nesses primeiros lugares clubbers, começou a se formar uma linguagem e gírias clubbers que vinham do inglês e até hoje são usadas”
Para o autor, com o tempo a música eletrônica local também passou a incorporar elementos nacionais. Um bom exemplo é o drum’n’bass, nascido no Reino Unido e que ganhou uma digital brasileira. Camilo relembra no livro a criação de “Sambassim”, primeiro hit de Patife, um dos expoentes do gênero no Brasil, a partir de um remix da canção homônima de Fernanda Porto. “Ele ousou na época. Primeiro, quis fazer uma música com letra, uma canção mesmo – na época, você ouvia muita coisa instrumental. E queria que a letra fosse em português. O (produtor) Xerxes, que trabalhava com ele, falou: ‘Você está louco, não pode lançar a música com letra em português!’. Mas ele apostou e deu super certo.”
O sucesso de “Sambassim” abriu caminho para que Marky – outro expoente do gênero no Brasil e que fez suas primeiras discotecagens na Sound Factory, na Zona Leste paulistana –, lançasse “Carolina, Carol bela”, que usa samples da faixa homônima de Toquinho e Jorge Ben. O DJ chegou a apresentar a música, ao lado Xerxes e o MC Stamina, no Top of the pops, o famoso programa da BBC inglesa. “O jeito do Marky é sempre lembrado. Ele é super animado, sorridente e acabou chamando atenção por isso. Especialmente na cena drum’n’ bass de Londres, onde todo mundo era super carrancudo.”
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A drag Grace Lesada, no Columbia
Foto: Claudia Guimarães
À moda da pista
Os clubs, claro, são um espaço de expressão de identidade, da “montação”. “A pista sempre foi um espaço de experimentação. Os estilistas beberam muito do clube. Na Inglaterra, nos anos 80, a Vivienne Westwood já fazia isso. Tanto que revistas como The Face e i-D cobriam moda e clubs”, conta. “No Brasil, houve uma geração nos anos 90 que surgiu das pistas: (Alexandre) Herchcovitch, Jum Nakao, Marcelo Sommer… Moda e pista, de certa forma, se retroalimentam”, diz o autor que cita Erika Palomino como outro exemplo dessa simbiose. “Foi por meio da coluna dela (Noite Ilustrada, publicada na Folha de S.Paulo entre 1992 e 2005, também assunto para o livro), que vários desses estilistas se projetaram. Ela estava falando de música, de comportamento, mas de moda também.”
O autor também reflete sobre a importância do conforto na pista. “É uma moda muito ligada a uma certa praticidade. Houve uma mudança até pela chegada do ecstasy, quando as pessoas começaram a se jogar por mais horas na pista e foi necessário que a moda ficasse mais confortável”, diz. “Por isso, há esse entroncamento muito fértil entre sportswear e moda de clube.”
“Há esse entroncamento muito fértil entre sportswear e moda de clube”
A cena paulistana hoje
Para Camilo, a fértil cena underground e de festas independentes dos anos 2010, como Mamba Negra ou Capslock, sofreu um golpe duro com a covid. “Conheço vários núcleos de festa que não sobreviveram à pandemia ou pessoas que trabalhavam com isso e foram fazer outras coisas. Acho que a cena ainda não se recuperou”, diz. “Ao mesmo tempo, você tem grandes labels de festa, com Só track boa, que lotou a Neo Química Arena (em junho), com nomes como Mochakk.”
Curiosamente, o livro se encerra antes deste capítulo em que a cena eletrônica migrou dos clubs para galpões. “Acho que é outro livro. Dá para fazer um Bate estaca 2. Essa história nem pretende ser definitiva.”
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