Marieta Severo: “Não tenho medo da palavra ‘velha'”

Atriz fala sobre envelhecimento, preconceito e do filme Aos nossos filhos, em que interpreta uma mulher presa e torturada na ditadura militar.


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Marieta Severo sabe bem o que foi a ditadura militar. Com o então marido, Chico Buarque, ela se exilou na Itália quando o governo ameaçava prendê-lo. Foi lá que a primeira filha do casal, Sílvia, nasceu – depois, ela seria mãe também de Helena e Luísa. Então a atriz pulou na chance de fazer Aos nossos filhos, dirigido por Maria de Medeiros a partir da peça de Laura Castro, em cartaz no Brasil.

No filme, Marieta interpreta Vera, uma mulher que foi presa e torturada durante a ditadura, quando estava grávida, e hoje trabalha em uma ONG que cuida de crianças que vivem com o HIV. Ela tem dificuldades de entender as escolhas da filha, Tânia (Laura Castro), que é lésbica e quer ter um filho gestada por sua companheira, Vanessa (Marta Nóbrega). O filme é baseado em experiências vividas pela autora, que também passou por um processo de inseminação artificial.

Por causa da covid-19, o longa-metragem teve sua estreia postergada, mas não poderia chegar em hora melhor. “Eu acho uma armação maravilhosa do destino que o filme saia agora, quando existe um percentual da população e uma geração, ou gerações, que enaltecem a ditadura que eles não conhecem”, disse Marieta em entrevista à ELLE, por telefone.


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A pandemia foi dura para a atriz de 75 anos. Seu marido, o premiado diretor teatral Aderbal Freire-Filho, teve um AVC e passou meses no hospital. Ela também esteve um tempo internada com pneumonia devido ao coronavírus. O Teatro Poeira, que fundou no Rio de Janeiro com sua amiga Andrea Beltrão, ficou fechado por mais de dois anos. Reabriu em janeiro com uma exposição em comemoração aos 15 anos, completados em 2020, idealizada por Freire-Filho e criada por Bia Lessa. Em junho, o palco foi ocupado pelo espetáculo O espectador, adaptação de Enrique Diaz e Marcio Abreu da peça de Matèi Visniec, estrelada por ela, Beltrão, Renata Sorrah e Ana Baird e em cartaz até novembro. Para ela, a única coisa boa da pandemia foi ter assumido os cabelos brancos.

No bate-papo com a ELLE, Marieta sobre Ditadura, liberdade, preconceito e evolução.

O que te interessou no filme?
Imagine o que é para uma pessoa como eu, que viveu a Ditadura na sua juventude e lidou com medo, censura, amigos torturados, gente desaparecendo. Que não podia fazer no teatro ou na televisão o que queria. Se mais tarde você tem um papel para falar disso, se atraca nele.

E a Vera é uma personagem bem complexa, cheia de contradições.
Achei interessantíssima a maneira como a Laura coloca essa mulher que, na época de juventude, foi uma revolucionária, lutou pela liberdade, pela igualdade social, foi presa e torturada. Mas que, quando tem uma filha que vive uma relação com outra mulher e está tentando ter um filho, se atrapalha. Ela tem seus preconceitos. Poder penetrar nessas áreas sombrias e incontroláveis de preconceito foi muito precioso.

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Marieta Severo e Marta Nóbrega em cena do filmeFotos: Divulgação


Nos últimos anos, a visão deturpada do que foi a Ditadura ganhou espaço, com gente até clamando pela sua volta. Acha que o filme ganha mais relevância por isso?
Eu acho uma armação maravilhosa do destino que o filme saia agora, quando existe um percentual da população e uma geração, ou gerações, que enaltecem a Ditadura que eles não conhecem. Ouvem falar do milagre econômico, do combate à corrupção, quando houve uma corrupção enorme na Ditadura. Como havia a censura, o país tinha a visão que eles queriam naquele período. E é incrível como essa visão, em muitos setores, permaneceu. É muito poderoso o filme tocar nessa ferida exatamente agora. Minha personagem no filme é presa grávida. É barbaramente torturada. Não há nada que justifique tortura de lado nenhum. Essa cultura da violência, do armamento, está sendo assimilada por camadas da população de uma maneira que nunca imaginei, em meus 75 anos, que pudesse acontecer. É muito triste.

Teme pela democracia?
Me dá a sensação de a gente estar sendo governado por pessoas absolutamente desgovernadas. Existe um vale tudo muito grande. A tentação do poder é enorme. Pessoas que entraram para a política e que querem se manter nela. Não vou entrar na análise política, não. Sei que no mundo existe uma tendência muito grande de contenção de regimes ditatoriais de extrema direita. Espero que estejam prestando muita atenção no Brasil.

“Me dá a sensação de a gente estar sendo governado por pessoas absolutamente desgovernadas”

Voltando ao filme, Vera é uma mulher progressista, mas não acompanhou as mudanças da sociedade na aceitação de pessoas LGBTQIAP+. Acha que às vezes há preconceitos que são difíceis de se libertar, especialmente para quem é de outra geração?
O ser humano é assim. Às vezes, ele é muito libertário em certas questões e não consegue ser em outras. Eu acho que consegui muito jovem me identificar contra o preconceito. Consegui educar minhas filhas assim e hoje aprendo com as minhas netas. Foram espaços que eu também tive de abrir dentro de mim porque recebi o bastão da minha mãe. Eu provavelmente sucumbi a muitas questões machistas. Claro. Você não se liberta de tudo de uma vez. São questões muito difíceis. É preciso ter o empenho e a consciência de que o melhor lugar do ser humano é o da falta total de preconceito. O preconceito é aprisionante. Ele te atrela ao passado.

O que aprendeu com suas netas?
A questão de gênero, por exemplo. Elas me dão aula. É impressionante a liberdade e a abertura com que elas lidam com questões LGBTQIAP+. E vou incluir meu netão também (o músico Chico Brown). É que, como são seis a um (seis netas e um neto), é um predomínio absoluto de mulheres. Contando as filhas, são nove mulheres para um homem, coitado (risos). Mas ele tem a cabeça feitérrima. A gente discute essas questões, e eu estou sempre aprendendo. Eu acredito que ser humano é ser em evolução. Não é para ficar lá no passado, preso. Quero ampliar os espaços dentro da minha cabeça, do meu ser, dos meus sentimentos, dos meus afetos. Eu sinto que isso está acontecendo. E para mim esse movimento repressivo é um estrebuchar. Mas acredito que esse espaço sem preconceitos é o melhor para o ser humano e vai ser ampliado cada vez mais. Podem estrebuchar à vontade (risos).

As mulheres sofrem pressão para serem perfeitas, estarem com a aparência sempre impecável. Você, como atriz, deve ter ouvido isso com mais frequência ainda. E assumiu seus cabelos brancos. Como aconteceu essa decisão?
Foi a única coisa boa que a pandemia me deu. Na realidade eu saí do Rio com o Aderbal, com minhas filhas. Fui para as montanhas, como todos os cariocas que puderam. E lá os cabelos brancos foram aparecendo (risos). Depois de quatro meses que a gente estava lá, veio o AVC do Aderbal. Aí foram quatro meses no hospital. Meus cabelos realmente estavam ficando bem brancos. Um médico me olhava e falava: “Isso aí não está bom não, né?”. E eu falava: “Não, mas vai ficar”. (risos). E foi uma libertação. Eu me sinto muito bem com meus cabelos brancos. Fora a praticidade. Porque aquela coisa de ter de pintar é apenas uma semana de felicidade. Depois começa a passar rímel (para disfarçar os brancos). Ai, que coisa mais chata! Eu acho que desses espaços coercitivos, o etarismo foi dos últimos a ser debatido.

“Eu me sinto muito bem com meus cabelos brancos. Foi uma libertação. Fora a praticidade.”

Acha que sofre com isso?
A gente depara com isso a cada minuto e dentro da gente mesmo. Não se trata da finitude, mas dos limites da idade. De você ser colocado fora da sociedade. Isso é muito grave. Nós, velhos – porque eu não tenho o menor medo dessa palavra… Eu falo: “Gente, mas eu estou velha”. Dizem: “Ai, Marieta”. Mas eu estou velha. Não tenho medo da palavra. Não me chamem de idosa. Palavra feia. Velha, eu acho linda. Estou com muita energia, muito bem, muito disposta… Velha. Só isso.

A pandemia foi muito difícil, como você estava falando. O Teatro Poeira, que você fundou com a Andrea Beltrão, ficou fechado. Como foi atravessar esse período?
Andrea e eu mantivemos o teatro fechado, com todos os funcionários, por dois anos e três meses. E a gente não tem patrocínio. Porque às vezes sai (na imprensa) que tínhamos patrocínio da Petrobras. Não. Quem construiu os dois teatros e os mantém somos nós. Tivemos auxílios nos nossos programas de formação (cursos e workshops). O que mantém o teatro é a bilheteria, que não cobre tudo, e nós duas. É nosso sonho, nossa realização. E nós, claro, somos atrizes privilegiadas, com contrato, podemos bancar. Mas podíamos estar comprando uma lancha ou um helicóptero, sei lá.

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