Milton Nascimento, 80 anos
As histórias por trás de cinco canções que sintetizam o legado colossal do cantor e compositor.
Patrimônio material e imaterial da cultura brasileira, Milton Nascimento completa 80 anos, nesta quarta-feira (26.10), na condição de criador de uma das obras mais extensas, longevas e monumentais da chamada música popular brasileira.
Iluminado pela cantora Elis Regina desde o início, na era dos festivais da canção dos anos 1960, Milton – capa da ELLE Volume 06 – fixou um estilo musical à parte, hoje conhecido sob o codinome Clube da Esquina. É uma citação à confluência das ruas Divinópolis e Paraisópolis, no bairro de Santa Tereza, em Belo Horizonte (MG), onde jovens mineiros se encontravam para cantar, fazer música e pensar. Nem samba, nem tropicália, nem bossa nova, o Clube da Esquina adicionou jazz na MPB, ao mesmo tempo que cultuava o alcance pop dos Beatles, produzindo dois discos homônimos.
Milton, à frente de todos esses jovens mineiros, estendeu o alcance simbólico da esquina belo-horizontina a todo um planeta. Selecionamos abaixo cinco canções capazes de sintetizar um movimento musical e 56 anos de um legado colossal, de mais de 30 discos, iniciado em 1966, quando Elis gravou “Canção do sal”.
“Sentinela” (1968)
Obra-prima de Milton Nascimento com seu principal parceiro, Fernando Brant, “Sentinela” é expressão máxima do barroco mineiro na obra do cantor nascido numa favela carioca, mas levado ainda bebê para Três Pontas (MG). O tema carpideiro (“Morte, vela, sentinela sou/ Do corpo desse meu irmão que já se vai”) remete a Tiradentes, a Che Guevara e à treva política da Ditadura militar, redundando num clima pesado que tem tudo a ver com o momento histórico do Brasil. A religiosidade católica de “Sentinela” se agiganta na monumental releitura que Milton fez em 1980, ao lado de Nana Caymmi, com canto sacro em latim e em português na introdução e no desfecho da mesma canção.
“Para Lennon e McCartney” (1970)
Milton havia se apresentado e tomado a cena com a obra-prima “Travessia” (1967) quando lançou uma das pedras fundamentais do movimento que ficaria conhecido como Clube da Esquina, a partir da bela canção de mesmo nome, que é anterior ao disco Clube da Esquina, também de 1970. Composta em trio pelos parceiros mineiros Lô Borges, Márcio Borges e Brant, “Para Lennon e McCartney” é acompanhada pelo exímio grupo de rock progressivo Som Imaginário, e mistura Beatles, MPB, jazz e Minas Gerais e provoca os super-heróis musicais do mundo anglo-saxão: “Eu sou da América do Sul/ Eu sei, vocês não vão saber/ Mas agora sou caubói/ Sou do ouro, eu sou vocês/ Sou do mundo, sou Minas Gerais”. Paul McCartney até hoje não respondeu à carta dos mineiros, mas o Clube da Esquina ganhou respeito e admiração mundiais, e Milton fez parcerias com feras do jazz como Wayne Shorter, Herbie Hancock, Ron Carter e Pat Metheny. Por outro lado, “Para Lennon e McCartney” inaugurou o vínculo profundo de Milton com a música latino-americana, que renderia clássicos em espanhol como “San Vicente” (1972), uma versão histórica de “Volver a los 17” (1976), da chilena Violeta Parra, em dueto com a argentina Mercedes Sosa, e “Canción por la Unidad Latino-americana” (1978), composta por Chico Buarque e pelo cubano Pablo Milanés.
“Cais” (1972)
Creditado a Milton e Lô Borges (então com 19 anos), o álbum duplo Clube da Esquina (1972) era na realidade um projeto coletivo, que consolidou o movimento de pop-rock-jazz mineiro e legou uma quantidade impressionante de obras-primas de pé na estrada, como “Nada será como antes”, “Tudo que você podia ser”, “Saídas e bandeiras”, “Nuvem cigana”, “San Vicente” e “Dos cruces”, entre muitas. Escrita por Ronaldo Bastos e Milton e gravada no mesmo ano pela maior intérprete dele, Elis, “Cais” sintetiza todas as canções ciganas de Clube da Esquina, como tema de partida para o mundo. O narrador embarca ao oceano que Minas Gerais não possui, seja em sentido simbólico (“Eu queria ser feliz/ Invento o mar/ Invento em mim o sonhador”) ou pelo fato de que logo Milton seria amado pelo “mundo ocidental” de que falava “Para Lennon e McCartney”. A música do Clube da Esquina se tornaria produto brasileiro de exportação.
“Maria, Maria” (1978)
A voz inigualável de Milton sempre cortejou o imaginário feminino, e esse laço profundo encontra ápice nas interpretações de Elis para seu cancioneiro e, sobretudo, na épica canção “Maria, Maria”, de Milton e Fernando Brant. Lançada no Clube da Esquina 2 (1978), mais um álbum duplo coletivo de grande impacto, a canção foi imortalizada em seguida na voz de Elis: “Mas é preciso ter manha, é preciso ter graça/ É preciso ter sonho sempre/ Quem traz na pele essa marca/ Possui a estranha mania de ter fé na vida”. A marca na pele frequentemente associou feminilidade e negritude, e Milton foi pioneiro em expressar o orgulho racial no Brasil, ainda que com discrição mineira. Isso acontece em cantos de trabalho como “Os Escravos de Jó” (1973), gravado em duo com Clementina de Jesus, “Raça” (1977), lançado por Fafá de Belém, e “Povo da raça Brasil” (1979), gravado por Simone. A militância racial se expande no álbum afrocatólico Missa dos quilombos (1982), e em Txai (1987), um disco todo fundado no parentesco e na afinidade de Milton com os povos indígenas do Brasil.
“Nos bailes da vida” (1981)
Mais uma parceria com Brant, a canção é um mostruário concentrado de tudo que a MPB significa, honrando inclusive o P de “popular” da sigla: “Foi nos bailes da vida ou num bar em troca de pão/ Que muita gente boa pôs o pé na profissão/ De tocar um instrumento e de cantar”. Sucesso numa época de sucessos como “Caçador de mim” (1981), “Coração de estudante” (1983) e “Encontros e despedidas” (1985), “Nos bailes da vida” empunha a bandeira da música como vocação, mais que fonte de glamour ou celebridade. “Todo artista tem de ir aonde o povo está”, canta Milton, que perseguiu esse ideal ao longo de toda a carreira, nos momentos de grande prestígio ou na fase dura de cantor quase subterrâneo que driblava a ditadura cantando para estudantes nas universidades Brasil afora. No videoclipe de “Nos Bailes da Vida”, lançado no Fantástico, da Rede Globo, Milton aparece dirigindo uma caminhonete antiga em estradas de terra pelos interiores do Brasil – o grupo Roupa Nova faz o coro da música e que na época ela foi gravada também por Joanna, 14 Bis e Fafá de Belém. Dessa mística brota todo o cancioneiro do artista masculino brasileiro que condensa com mais propriedade as qualidades de cantor e de compositor.
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