Marina Lima revisita o passado com songbook

Cantora também lança EP de inéditas, "Motim", com participação de Mano Brown, e fala sobre o país, seus 65 anos e Jane Fonda.


BzFGSIfm origin 85



“Tive que aguentar a dificuldade e rever tudo aquilo. Foi bom, fiquei com uma simpatia e uma boa vontade comigo”, diz Marina Lima sobre olhar para o próprio passado musical. A compositora e cantora carioca se impôs essa tarefa durante a pandemia para preparar o songbook Música e letra – 21 Discos, todos os sucessos + 4 bônus, que disponibiliza agora gratuitamente, no formato de e-book, em seu site oficial. Foram transcritas em letra e partitura 175 músicas que integram todos os álbuns dela lançados até aqui, inclusive as que não foram compostas por ela. Os quatro bônus a que se refere o subtítulo são as cifras de quatro canções inéditas, que Marina coloca também nas plataformas digitais de música, num EP batizado de Motim.

Pessoal e introspectiva como costuma se mostrar em grande parte de sua obra, ela segue também o modelo de engajamento que adotou no álbum anterior, Novas famílias (2018), em especial na faixa “Nóis”, que fala da “onda de horror” que “chegou por aqui”. Para essa, Marina convocou a participação especial do rapper Mano Brown, num encontro inédito entre os mundos paralelos do MPB e hip-hop. O líder dos Racionais MC’s faz um vocalise que soa discreto, mas também incomum para quem não costuma trazer a público o lado cantor.

Na entrevista abaixo, Marina fala sobre a inspiração recebida da atriz e ativista estadunidense Jane Fonda, sobre a nesga de otimismo em relação ao Brasil que procura preservar mesmo em tempos mais duros, sobre a participação como atriz no filme Verlust (2020) e sobre o balanço de uma vida inteira, na canção “Pelos apogeus”. Aos 65 anos, trata essa fase da vida como “um inverno claro como verão”, que procura usufruir com a sabedoria que conta não ter tido nas etapas anteriores.

nz55PaK0 image 798

Foto: Divulgação/Candé Salles

Parece que estamos voltando às origens da indústria musical, com o lançamento de faixas avulsas e EPs. Como você está se adaptando a essa mudança?

Eu queria fazer um songbook, e achava que os 21 discos davam pistas e contam tudo que tinha feito até agora. Não via como sendo o momento certo para lançar um outro álbum, era informação demais. E, como todo o formato musical mudou – a forma de consumir, de comprar, tudo –, eu falei: vou aproveitar isso e fazer menos música. São dois produtos simultâneos que de alguma forma se completam. Um são todos os discos que fiz até hoje, que é onde está o meu tesouro. É para as pessoas entenderem como foi a evolução e o crescimento daquela artista. Fiz da melhor maneira possível, porque é digital, interativo e gratuito. Ou seja, qualquer pessoa que queira saber e aprender a minha obra pode pegar lá. Dei para eles. Dei de volta o que me deram, porque do Oiapoque ao Chuí, até hoje, onde faço show, é muita gente cantando música minha. E escolhi quatro músicas que eu achava que eram a tradução do meu momento de agora no Brasil e também a síntese de tudo aquilo que eu fiz. Estou lançando um produto que realmente é a minha carreira inteira, o agora e o que veio antes.

Como fica a sobrevivência, se é gratuito?

Mas eu ganhei dinheiro com música, no decorrer da minha carreira. Ganho ainda, quando toca música minha em rádio. Vivo disso, de autoria. Não é de show. Ganho com show, claro, mas o que me dá um dinheiro fixo por mês são as canções que gravei, que compus, que tocam no rádio. A minha intenção não era fazer o songbook e “agora vocês pagam e podem aprender a tocar”. Não. Espalhem a minha obra, toma, é para vocês. Vocês vão levar meu legado adiante.

Como é criar em meio a tudo que está acontecendo?

Aconteceram duas coisas. Primeiro, esse caos mundial e, segundo, a constatação da inércia e da vergonha brasileira, tudo ao mesmo tempo. Tem um lado ruim, terrível, que dá vergonha e nojo, que você menospreza. Mas, ao mesmo tempo, a vida me deu aptidão para música, e é dela que extraio meus maiores tesouros. Eu não podia sair de casa, não podia fazer show, não podia nada, como eu podia ajudar? Me dedicando ao meu talento. Então, voltei a estudar violão, o dia inteiro e naturalmente comecei a compor feito uma louca. Tem bem mais do que quatro (faixas inéditas). Então (o músico) Giovanni Bizzotto veio me encontrar em São Paulo para conferir as partituras, as cifras. Eu não sou uma pessoa que gosta de ficar olhando demais para trás. Crio um disco, por exemplo, até à exaustão, e largo, entrego aquilo, não fico mais ouvindo. Então, aconteceu uma coisa que eu não esperava, que era Giovanni chegar com os 21 discos para a gente conferir. Só me lembro que lá perto do décimo disco tive um ataque e disse para ele: “Mas para que tanta música? Para que tanto disco? É coisa demais, não dá”. Fiquei com raiva de mim mesma. Mas não tinha como voltar atrás, e tive que aguentar essa dificuldade e rever tudo aquilo. Por um lado, no começo, foi chato. Mas depois foi bom, porque meio que entendi todo meu itinerário de novo. Entendi o que eu gostava ou não em tal disco. Fiquei com uma simpatia e com uma boa vontade comigo. Achei que tinha feito bem.

ctYQ8u4P image 799

Foto: Divulgação

A música pop lida muito com a alegria, há artistas que têm de despistar a falta de alegria atual. Você não vai por esse caminho, o EP é muito realista.

É, mas quando você fala em alegria, me lembra um pouco umas músicas que estão muito na moda no Brasil agora, até gravei uma, tecnobrega. Essa não é a praia que escolho. Acredito que há beleza e inclusive alegria em alguns caminhos mais aparentemente profundos e não ditos, mas que dão esperança. Você cria quatro atmosferas e diz coisas sobre você que são um pouco mundiais. É tão pessoal que aquilo vira, para cada um, uma tradução do seu próprio mundo. Você não precisa contar uma história, pode contar sensações. Algumas coisas são o que são, feito “Nóis”, por exemplo, a música da qual Mano Brown participa. Ela fala que nada como um momento de alegria como o daquele homenzinho que caiu lá no norte e a provável queda desse daqui. E que esse povo sonhador vai poder se abraçar e se beijar de novo. É uma maneira de falar com esperança. Já conheço o Mano Brown há muito tempo, com a pandemia foi “agora ou nunca, vamos lá”. A música não tinha uma melodia cantada e nem letra, só tinha um arranjo pronto, eletrônico, construído. Quando Mano Brown sentou do meu lado e começou a cantarolar no meu ouvido um vocalise sem letra, que ele ouvia naquela música, eu gravei, porque era lindo. Eu não sabia que ele tinha uma voz tão bonita. Parecia, sério, uma voz de Milton Nascimento. Falei: “O que é isso? É você?”. “Sou.” “Você canta assim?” Ele ficou sem graça: “Ah, eu canto, mas nos meus discos boto os outros para cantarem”. Falei: “Mas no meu você vai cantar”. Por causa daquele vocalise dele eu compus a letra e a melodia da música.

O que é o Brasil hoje, para você?

O Brasil está dentro de mim. O país em que eu acredito é o que sei que existe, já vi de perto, sei que a gente possa talvez ter de volta. Agora, o Brasil, do jeito que está, esse país tenebroso, essa vergonha, em sua pior fase da história inteira, isso para mim foi como uma piada de mau gosto, e espero que em 2022 esse quadro mude. Que essa gente saia e o país possa voltar a sonhar com as coisas que aprendi serem as mais bonitas.

Como você se sentiu atuando como atriz no filme Verlust?

Fiz porque sou muito amiga do (diretor) Esmir Filho, ele é um dos grandes amigos que fiz em São Paulo, ele e Ismael (Canepelle), que escreveu o roteiro. Mas quando eles me chamaram era para fazer a trilha sonora, e topei fazer. Foram meses eles me enganando. Aos poucos, cada vez que chegava o roteiro, a personagem tinha mais coisa minha. Falei: “Afinal, o que vocês estão fazendo?”. “A gente pensou em você fazer…” Falei: “Mas de maneira nenhuma, não, não, não, não, não, não, não!” Esse “não” durou, sei lá, quatro anos. Fiquei apavorada, comecei a não atendê-los mais. “Não, eu vou prejudicar vocês! Não sou atriz, não sei fazer, vai ser horrível, não gosto de me ver.” Fiz o melhor que pude, eles foram maravilhosos comigo. Não acho que é muito bom, não, mas eu não poderia fazer melhor, porque não sei fazer. Acho que alguém poderia fazer aquilo melhor. Mas é o que eu pude, e cumpriu para eles o que queriam. Então, ficou todo mundo salvo, e nunca mais, nunca mais, nunca mais (vou fazer).

xH9U1aVl image 800

Foto: Dvulgação

A música “Pelos Apogeus” é muito pessoal, não?

Ela é, porque eu queria fazer uma música que falasse de uma forma muito concisa sobre vários momentos da minha vida: a infância com o mar, a pré-adolescência nos Estados Unidos com o frio e os primeiros descobrimentos, a adolescência, os 20 e os 30 anos com aquelas paixões pelo Rio de Janeiro, tanto encontro e desencontro. Cada estrofe pega isso, uma fala das “derrapadas na meia-idade”. E o final é “neste inverno claro como verão”. Vou contar por que eu fiz isso. Sabe a Jane Fonda? Ela é uma mulher fascinante, uma americana doida, maravilhosa, louca. Ela escreveu um livro agora, aos 83 anos, em que diz o seguinte: “Para mim, a infância foi dos primeiros anos aos 30. A meia-idade foi dos 30 aos 60. E agora, dos 60 em diante, eu vivo meu apogeu. Meu apogeu é este inverno”. Achei que ela foi muito inteligente em dividir assim. O inverno da existência deveria realmente começar aos 60, que foi onde aprendi que tudo muda, o envelhecimento começa, os códigos são realmente outros. Tudo que você aprende que vai importar para o seu envelhecimento e para a sua ida é dos 60 em diante. Para mim, eles vieram de uma maneira muito clara e boa, e estou aproveitando o máximo que posso disso.

“A minha cara vai mudando de acordo mesmo com o tempo. Não tem nada de mentira, não fiz plástica para mudar nada. É assim que é”

Quais foram as “derrapadas da meia-idade”?

Foram algumas. Em alguns amores você toma um susto quando percebe que está seguindo um padrão e não se apaixona pela pessoa, mas pelo padrão que você quer. Você pode pegar qualquer pessoa e botar naquele padrão, sem ela ter nada a ver com aquilo. Isso para mim é uma tremenda derrapada, porque você coloca pessoas em lugares em que elas não deveriam estar, elas não têm culpa que você as colocou e você não percebeu a tua repetição. A gente é obrigada talvez a ter que viver uma solidão que dure mais tempo, para se entender, o que é repetição, o que é ilusão, o que é real, o que você aguenta sozinho. É importante esse momento de solidão. Aí o inverno vem de uma maneira muito clara e alegre, porque é o último período, onde você pode usufruir tudo que sabe melhor. Aí os grandes amores chegam. Você está pronto, é mais difícil escolher errado. No inverno da sua existência, você quer escolher direito para aproveitar bem o tempo que lhe resta, de uma maneira que valha a pena, nova, que você não criou do nada. É você tomando suas decisões com mais clareza e não caindo em derrapadas. Estou numa relação há oito anos. Para manter uma relação por tanto tempo, são necessárias outras coisas que eu não conhecia e estou conhecendo agora. É claro que fora isso ela é irresistível, a Lídice.

Ao mesmo tempo que fala do inverno claro, “Pelos Apogeus” fala também do “breu”, por quê?

Breu é uma palavra linda. Breu quer dizer também a escuridão das coisas. Estou procurando a claridade, mas a morte existe. Algum dia, nesta vida, estará tudo escuro. Não sei o que vem depois, eu sei sobre o agora. Em algum momento, o breu virá. Essa vida que conheço e desfruto vai acabar. É a essa finitude que me refiro.

Colegas suas como Rita Lee, Fafá de Belém e Tetê Espíndola estão assumindo os cabelos grisalhos, como tem sido esse processo para você?

Estou assumindo também, tenho um monte de cabelo branco já. Mas não estou muito preocupada com isso, não. Eu já vivi esse tempo todo, o auge de uma coisa, de outra. O auge que eu quero agora é de uma sabedoria. Não é a coisa física, estou com 65 anos, não é mais isso. A minha cara vai mudando de acordo mesmo com o tempo. Não tem nada de mentira, não fiz plástica para mudar nada. É assim que é.

Para ler conteúdos exclusivos e multimídia, assine a ELLE View, nossa revista digital mensal para assinantes