Os cabelos brancos de Fafá de Belém

Cantora, que lança single com Johnny Hooker, usou a pandemia como pretexto para assumir-se grisalha e fala da invisibilidade das mulheres com mais de 60 anos: "Estamos vivas, temos tesão, anseios, uma experiência enorme que corre a nosso favor".


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“Passei cinco meses em casa. Acho que não ficava cinco meses no mesmo lugar, dormindo na minha cama, desde que saí de casa”, diz Fafá de Belém, que migrou definitivamente do Pará aos 18 anos, para ser cantora no Sudeste. Ela só rompeu o confinamento em agosto passado, quando viajou para fazer em Portugal seus únicos shows ao vivo desde março de 2020. Entre algumas viagens e uma rotina de lives transmitidas de dentro de casa, mas com estrutura profissional de gravação, conta que fez até agora 28 testes PCR para monitorar a Covid-19, todos negativos.

Aos 64 anos, Fafá usou a pandemia como pretexto para deixar de pintar os cabelos e assumir-se grisalha, e afirma que se trata de “uma libertação”: “Fui assumindo, e a pandemia fechou os salões. Estou adorando o meu cabelo branco, ganhei uma força nova”. E aproveita para militar pela causa dos maiores de 60 anos: “As pessoas não estão acostumadas com mulheres ativas com mais de 60 anos. É um discurso que comecei por conta dessa invisibilidade que a sociedade nos impõe. A gente não pode, não, bicho. Estamos vivas, temos tesão, anseios, uma experiência enorme que corre a nosso favor”.

Ela afirma que tem conseguido garantir o sustento do “núcleo duro” de sua equipe apesar das dificuldades: “Saímos do olho do furacão não vou dizer que ilesos, mas com poucos machucados”. Um dos trabalhos concluídos na fase de pausa é o recém-lançado single e videoclipe com uma nova versão de seu sucesso popular “Abandonada” (1996), regravado (ao vivo, bem antes da pandemia) a convite do cantor e compositor pernambucano Johnny Hooker. Entre as gargalhadas que lhe são peculiares, Fafá falou sobre esses e outros assuntos na entrevista a seguir:

 

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Foto: Divulgação/Fernanda Gomes

 

Você tem trabalhado bastante nesse último ano, não?

Muito. Ano passado, fiz 45 anos de carreira e dez de Varanda de Nazaré, um projeto que tenho para mostrar a cultura paraense durante a maior procissão mariana do mundo, o Círio de Nazaré, com 3 milhões de pessoas nas ruas. A gente preparou isso com antecedência, mas veio a pandemia e nos deixou dentro de casa. Passei cinco meses em casa. Acho que não ficava cinco meses no mesmo lugar, dormindo na minha cama, desde que saí de casa. Me fez bem, no sentido de pensar e repensar muita coisa e de me reestruturar numa outra realidade com a qual eu flertava, mas não tinha domínio, que é essa vida toda virtual. Depois de um mês e meio aqui sozinha, começamos a pensar nas lives e em junho topei fazer minha primeira live musical virtual, com temas de novela. Moro numa cobertura (em São Paulo), botei lá equipe, montei um centro de recepção com Lisoform, álcool-gel, troca de camiseta, tudo. Qual é a preocupação da gente? É com nossa sobrevivência, mas também do nosso entorno. Tenho famílias que dependem basicamente do meu trabalho há 40, 30, 20 anos. Nós fomos atingidos, mas os nossos backgrounds foram mais. Saímos do olho do furacão não vou dizer que ilesos, mas com poucos machucados.

“Tenho famílias que dependem basicamente do meu trabalho há 40, 30, 20 anos.”

Você se adaptou bem ao formato das lives?

Muito bem. Fiquei superorgulhosa quando Gal Costa e Maria Bethânia falaram das minhas lives. São pessoas por quem tenho maior admiração e respeito, meus ídolos. Foi um trabalho de equipe e de câmera. Aprendi a me comunicar com a câmera lá atrás. Cheguei aqui (no Sudeste) aos 18 anos, imagina, nunca tinha visto uma câmera, nunca tinha entrado num estúdio. Aí a música “Filho da Bahia” (1975) explodiu, e eu fiz o Fantástico. (O diretor) Nilton Travesso conversou muito comigo sobre a câmera ser meu alvo, minha plateia. E eu gosto da câmera. Agora foi um retomar dessa história. O foco da primeira live era para esse povo de mais de 60 anos que estava em casa. Até então as lives eram muito endereçadas aos jovens.

Que falta têm lhe feito os shows com espectadores presentes?

A gente sente falta. Para mim, a falta fundamental é do retorno da energia, quando você joga e aquilo volta para você. A live não tem nada disso, não tem o aplauso, o retorno. Não tem nada que substitua a troca de energia do show. Você pode cantar olhando para a câmera, mas está trocando com um aparelho. A minha conexão agora é com os músicos, com a equipe. A gente se emociona, vibra durante as lives. O primeiro dia que saí de casa e fui fazer o PCR foi 29 de julho, e no dia 1º de agosto fui a Portugal fazer uma live no dia do meu aniversário, em Fátima, por streaming. Foi maravilhoso, fizemos piano e guitarra portuguesa, com palco, teatro, tudo com assepsia, aquelas coisas com ozônio. Voltei para o Brasil e em setembro fiz uma turnê em Portugal e um especial com músicos portugueses, na comemoração dos cem anos da Amália Rodrigues. Fiz três shows com plateia, mas tudo com afastamento, baias de acrílico, aquelas coisas. Na Praça de Toro, de 10 mil lugares, tinha 2.000 pessoas. Então voltei direto para o Círio de Nazaré. No princípio do ano, quando estava mais tranquilo, fui à Bahia por três dias para uma imersão de trabalho, mas aí veio a segunda onda e fiquei lá, travada. Ficar travada na Bahia é muito bom (gargalha), agradeci a Deus, a Nossa Senhora, a todos os orixás. Já fiz 28 PCRs. Não deu nada, graças a Deus.

 


Johnny Hooker feat. Fafá de Belém – Abandonada (Ao Vivo em Recife)

www.youtube.com

 

Você está lançando uma música com Johnny Hooker, que é pernambucano, mas tem uma conexão com o brega paraense.

Ele é maravilhoso. Quando fiz o (álbum) Tamanho certo, eu tinha “Meu coração é brega”, uma música que me jogou no meio das mangueiras de Belém, na minha infância, no colorido da minha terra. Entre as (outras) músicas que gravamos estava “Volta”, do Johnny Hooker. Mandei para ele e deixei uma mensagem dizendo que tinha gravado e que adoro o trabalho dele. Foi engraçado, porque ele ligou para algumas pessoas que sabia que eu conhecia perguntando se era eu mesma (ri). Eu adoro ouvir o que está chegando. Quando escutei Johnny Hooker achei genial, era uma coisa completamente transgressora, trazendo uma realidade de paixão, do universo do chamado brega, que adoro. Sou uma mulher sanguínea, apaixonada. “Abandonada”, que gravamos juntos, é uma música de 1996, olha que loucura. Mas é hino na comunidade LGBT e entre as mulheres.

“Sou uma mulher sanguínea, apaixonada.”

Você tem feito alguns trabalhos como atriz. Se considera também uma atriz?

Eu fiz teatro. A única coisa que estudei como arte foi teatro. Fiz parte do Experiência, o grupo mais antigo de Belém. O teatro me deu muita ferramenta para palco. Quando fiz meu primeiro show de carreira, Tamba-Tajá (1976), tive a direção do Fernando Peixoto, um dos formadores do grupo Oficina. Gosto de ser dirigida. E nunca mais fiz teatro, mas tenho feito televisão, adorei fazer a Mãe Lua (no filme Pai em Dobro, de 2021) e estou adorando me ver como Mary Star de novo em A Força do Querer (novela das 21h que acabou de ser reprisada pela Globo). E adoro ver a reapresentação pela vigésima vez dos Mutantes (2008), na Record. Chego em Portugal, está passando Os Mutantes (ri), adoro.

Queria falar dos seus cabelos brancos, um tabu feminino que você está assumindo.

É. Divido a minha vida entre Portugal e o Brasil, há 35 anos, e cada vez mais as mulheres de lá deixam de pintar o cabelo. Mas aí me dizem que não, não pode, vai envelhecer. Tenho uma base indígena, claro, então meu cabelo expulsa tinta. Quando comecei a pintar, tinha que fazer uma vez por semana, um saco. Em 2019, me programei para passar um mês inteiro fora, num lugar onde ninguém me conhecia. Faço isso muito, para andar na rua tranquila, ter uma vida completamente anônima. Fui para Lituânia, Letônia, e passei um mês sem pintar. Quando cheguei aqui, tinha a gravação de Pai em Dobro, o filme da Maísa, e a xamã tinha o cabelo grisalho. Eles tinham uma peruca, mas falei não, vamos começar a limpar a tinta. Fui deixando sair, fui assumindo. A pandemia fechou os salões e eu estou adorando o meu cabelo branco, ganhei uma força. (A atriz) Vera Holtz, que é minha vizinha e foi a primeira pessoa com quem falei, disse: “É uma libertação”. E é uma libertação. Está até nascendo cabelo novo. Porque é muita tinta agindo ali na raiz, né? Estou feliz da minha vida, e acho que vale para muitas mulheres. Lá pelos 55 anos, a gente começa a perceber que não adianta usar cinta porque todo mundo sabe como a gente está apertada (gargalha). É uma libertação essa consciência. Tenho tentado convencer algumas amigas minhas a deixar de pintar, mas todas têm medo.

“Lá pelos 55 anos, a gente começa a perceber que não adianta usar cinta porque todo mundo sabe como a gente está apertada. É uma libertação essa consciência.”

Essa é uma das crueldades a que as mulheres são submetidas?

É, e a gente não percebe que não tem nada a ver. Você mais jovem ou mais velho não é o cabelo, não é nada. São os seus olhos. É o que você coloca para fora. Eu estou em paz. A princípio, vi mais reações machistas de mulheres do que de homens. “Isso te envelhece”, “você está parecendo uma vovozinha”. Falo: mas eu sou uma vovozinha, tenho duas netas maravilhosas (gargalha). As pessoas não estão acostumadas, assim como não estão acostumadas com mulheres ativas com mais de 60 anos. É um discurso que comecei por conta dessa invisibilidade que a sociedade nos impõe. A gente não pode, não, bicho. Estamos vivas, temos tesão, anseios, uma experiência enorme que corre a nosso favor (gargalha) e um filtro melhor que na adolescência.

Temos outras grisalhas: Tetê Espíndola, Rita Lee. Vocês estão lançando uma tendência?

Acho que Rita foi a primeira de nós. Mas Bethânia, há quantos anos Bethânia vem cultivando seus longos cabelos grisalhos? Glória Pires está assumindo os brancos também.

Queria um parecer seu sobre nossa situação política.

Está difícil, complicadíssimo. Não se pode virar de costas para a saúde, para todo um país em nome de uma briga política ou uma insensibilidade. O povo brasileiro deve ter a consciência da importância do seu voto para que ele seja ouvido, respeitado e cuidado por quem elege. O que eu acho fantástico é que a sociedade civil como um todo, a mídia, todos os profissionais de imprensa, os artistas, o empresariado, até os banqueiros (ri) e finalmente a classe política estão entendendo a gravidade deste momento. E vendo o fundamental: as vacinas que não foram planejadas, que foram descartadas e ridicularizadas em nome de um ego gigantesco, que só pensa na sua própria eleição, e da condução do país como se fosse um grande rebanho bovino. Avalio a volta do Centrão, o negacionismo do presidente, a insensibilidade do ministro da Saúde, a militarização dos ministérios. Esse (ministro) Ricardo Salles, que tem vários processos como inimigo do meio ambiente, é o cara que passa a boiada. É inacreditável a Lei Rouanet ser proibida ou ser filtrada porque onde houve fechamento ou medidas de prevenção ela não será liberada. A briga, a luta hoje é pela saúde, pela vida. Pela vida. As pessoas estão em casa e nós somos a fonte de entretenimento, e agora mais um recurso nosso é ameaçado. Que é isso? Ninguém aqui rouba dinheiro de ninguém. É de uma insensibilidade, de uma maldade, sabe? E de um cagaço, porque na hora que o cara lá vai preso (o deputado Daniel Silveira), não é mais aquele que fala horrores do STJ, da classe política, da população etc. Todo machão é cagão, né? (risos)

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