O sucesso de “Cangaço novo”

Cinco motivos para o êxito da série do Prime Video, que transforma o Nordeste brasileiro em faroeste, com altas dose de ação e realismo.


Thainá Duarte, Alice Carvalho e Allan Souza Lima, os irmãos na série Foto: Renato Amoroso



Há alguns anos, a ideia do Nordeste na cultura de massa trafegava entre o exótico praieiro e o sofrido sertanejo. Com a sofisticação das séries e uma maior popularidade do cinema nordestino, os estereótipos começaram a ruir. Faltava, no entanto, uma obra que mergulhasse na verdadeira realidade da região, mas sem medo de exalar seu lado pop moderno.

Cangaço novo, série brasileira do Prime Video, “moderniza esse passado”, como diria Chico Science, para dar um pulo adiante na produção televisiva brasileira. Assim como um dos líderes do movimento manguebeat, nos anos 90, seus criadores viram que há pontos em comum entre Zapata e Lampião, entre os Panteras Negras e Zumbi dos Palmares. Adotando o tribal, a produção se tornou global, estreando em 240 países e chamando a atenção da mídia nos EUA e Espanha, por exemplo. E aqui estão cinco razões para esse sucesso:

A trama universal de Cangaço novo

O casal de criadores Mariana Bardan e Eduardo Melo fizeram o primeiro rascunho do que se tornaria Cangaço novo há dez anos, quando imaginaram como seria O Profeta (2009), filme de máfia do francês Jacques Audiard, ambientado no Nordeste brasileiro. Com a entrada da produtora O2 e do poderoso Prime Video, a história foi ganhando novas formas até chegar aos oito episódios que estrearam em agosto na plataforma.

Eles acompanham Ubaldo (Allan Souza Lima, no ar com a novela Amor perfeito, da Globo), jovem que foi expulso do Exército e depois perde o emprego no banco exatamente quando seu pai adotivo fica extremamente doente. Precisando de dinheiro para pagar as contas do tratamento, ele sai de São Paulo rumo ao Ceará, onde teria uma herança do pai biológico para receber.

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Na fictícia Cratará, Ubaldo descobre que tem duas irmãs, Dinorah (Alice Carvalho) e Dilvânia (Thainá Duarte), a primeira envolvida com um grupo de assaltantes de bancos, enquanto a segunda faz parte de uma espécie de seita que venera o falecido pai. Ele seria inspirado na história real do ladrão Valdetário Carneiro, tema do livro Valdetário Carneiro: A essência da bala (2022), de Paulo Nascimento e Rafael Barbosa.

Cangaço novo é a transformação do relutante Ubaldo no líder de uma facção criminosa que passa a incomodar os mais poderosos e tenta poupar os inocentes, mas que deixa um rastro de violência pelo caminho. Pode ter um DNA de Baile perfumado (1997), filme de Lírio Ferreira e Paulo Caldas, em 1997, e do clássico Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), de Glauber Rocha, mas também é possível enxergar influências de Mad Max, Breaking bad, John Ford e Sergio Leone.

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Alice Carvalho como Dinorah Foto: Renato Amoroso

Alice Carvalho

Se caísse nas mãos erradas, o papel de Dinorah poderia ter provocado antipatia e flertado até com a psicopatia. Afinal, ela é uma das cabeças de um bando de jagunços que assalta bancos, seus clientes e ainda aterroriza famílias pobres pelo Ceará. Mas a personagem é interpretada por Alice Carvalho, que rouba todas as cenas nas quais aparece e enverniza a garota com fúria, alma e realismo.

A potiguar de Parnamirim, parte da grande Natal, se preparou por seis meses antes das filmagens começarem, em 2020, treinando hipismo, levantamento de peso, jiu-jítsu, pilotagem de motos e muay thai, além do manuseio de armas. Alice é adepta da imersão total nos papeis. Ela foi orientada pela preparadora de elenco Fátima Toledo (Central do Brasil e Cidade de Deus) e fez um pacto com os outros protagonistas de viverem como irmãos durante as filmagens.

O resultado é uma das atuações mais icônicas da televisão moderna brasileira e o surgimento de uma estrela no papel de uma cangaceira com traumas de infância e um senso de honra diferente dos companheiros de roubo.

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Allan Souza Lima e Thainá Duarte (à esquerda) Foto: Victor Juca

Produção hollywoodiana

Um dos segredos do sucesso da série reside nas suas cenas de ação. No passado, dificilmente um programa de TV traria sequências com tanta adrenalina capazes de rivalizar com algumas produções hollywoodianas. Não é o caso de Cangaço novo, que aposta no coreógrafo de lutas Dani Hu e no coordenador de dublês espanhol Jordi Casares para tomadas de perseguição de carros, dezenas de tiroteios e lutas espetaculares e verossímeis.

Não para por aí. A produtora O2 investiu pesado na sua equipe técnica, que além de Toledo no comando da preparação de elenco, conta com o montador Lucas Gonzaga (Marighella) e os diretores Fábio Mendonça (Vale dos esquecidos) e Aly Muritiba, que trouxeram dramaticidade e agilidade à série. Muritiba, inclusive, teve seu Deserto particular escolhido para representar o Brasil na corrida por uma vaga no Oscar 2022, mas ficou no meio do caminho – ele agora está dirigindo a continuação de Cidade de Deus em forma de série para a HBO.

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Allan Souza Lima e Thainá Duarte Foto: Divulgação

Nordeste de verdade

Cangaço novo é ambientada numa cidade fictícia do Ceará, mas ela foi filmada numa mescla das cidades de Cabaceiras, no Cariri paraibano, e Parelhas, no Seridó potiguar. Ao todo, a equipe percorreu nove municípios para mostrar algo muito diferente do sertão estereotipado e marrom que marcava o Nordeste brasileiro na TV. Cabaceiras, com suas colinas rochosas e mato rasteiro, inclusive, já foi cenário de mais de 50 longas, como O auto da compadecida (2000) e Cinemas, aspirinas e Urubus (2005) – ela ostenta até o letreiro “Roliúde nordestina” na sua entrada.

Além disso, os sotaques e expressões regionais mostram que sofisticação caminha lado a lado com realismo. Os atores mostram a beleza e o vasto vocabulário da região: Allan Souza Lima, Adélio Lima, que vive um dos líderes dos cangaceiros, e Hermila Guedes (O céu de Suely), dona de um frigorífico na trama, são pernambucanos; Marcélia Cartaxo (A hora da estrela), que interpreta a líder da seita de Vaqueiro, e Luiz Carlos Vasconcelos, dono do papel de um político poderoso de Cratará, são paraibanos; e Alice é potiguar.

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Allan Souza Lima e Hermila Guedes Foto: Divulgação

A trilha sonora de Cangaço novo

Outro acerto de Cangaço novo foi a composição da trilha sonora. Se tem Maria Bethânia cantando a tradicional “Carcará”, a série também traz os pernambucanos do Ave Sangria e da Nação Zumbi para mostrar o encontro de gêneros internacionais com ritmos regionais. A onipresente Alice mostra que também tem futuro como cantora na sua versão lo-fi de “Espumas ao vento”, cuja original marca uma das cenas mais bonitas da série.

Já a trilha orquestral ficou a cargo de Beto Villares, Érico Theobaldo e o coletivo Submarino Fantástico, com participações de Siba e Allen Alencar. Assim como o resto da série, ela tenta fugir de clichês, aponta a música nordestina para o futuro e ainda traz um sensação de faroeste.

 

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