Maison Margiela Artisanal, verão 2024
Recuperando um formato de desfiles há tempos dado como acabado, John Galliano devolve o poder emocionante e provocador moda com o desfile de verão 2024 de alta-costura da Maison Margiela.
Até a noite de quinta-feira (25.01), um desfile como o de verão 2024 da Maison Margiela Artisanal – a linha de alta-costura da marca – era considerado coisa do passado, uma relíquia histórica sem a menor chance de existência no presente. Pois bem, chegou a hora de rever isso aí.
Na noite da primeira lua cheia do ano (data escolhida nada por acaso), o diretor criativo John Galliano realizou uma apresentação que colocou toda a temporada de alta-costura em perspectiva. Mais impressionante ainda, fez um show capaz de superar o impacto, o poder e sensibilidade de suas coleções e espetáculos mais grandiosos.
O desfile
O desfile começa com um vídeo em preto e branco, estilo film noir. Tem mistério, crime, violência, voyerismo, sedução, sexo, tudo às escuras, nas sombras, no underground, “nas entranhas de Paris”, nas palavras do estilista.
As referências são as fotos noturnas de Paris nos anos 1920 e 30, do fotógrafo e cineasta húngaro Brassai. Em especial, as imagens que compõem a série Paris de Nuit, de 1932, com personagens da noite e submundo da capital francesa.
No meio do filme, rolam ainda umas paixonites do Galliano, tipo o tango e a decadência dos estilos e períodos Vitoriano e da Belle Époque. Até que a última cena acaba no início da passarela real, debaixo da ponte Alexandre III.
É como se o modelo e muso do diretor criativo, Leon Dame, saltasse da ficção para a realidade. Da rua de paralelepípedo, os personagens entram num bar/café/cabaré/prostíbulo, com madeiras envelhecidas, drinks esquecidos, garrafas caídas, espelhos manchados e uma mesa de bilhar. Todos com caminhar difícil, desconfortável. Lembra os movimentos exacerbados dos primeiros filmes de cinema. Lembra marionetes.
O teatro
Além de estilista, John Galliano é um excelente contador de histórias. Em seus desfiles, ele é uma espécie de dramaturgo ou cineasta obcecado pela perfeição da cena imaginada.
No mais recente, algumas peças são tingidas para simular o reflexo da lua (lembra que a data do desfile não foi definida à toa?). Em outras, cores e texturas são combinadas meticulosamente para simular a atmosfera de um inferninho mal iluminado, com ar turvo, carregado de fumaça e pó.
Maison Margiela Artisanal, verão 2024. Foto: Divulgação
Maison Margiela Artisanal, verão 2024. Foto: Divulgação
Maison Margiela Artisanal, verão 2024. Foto: Divulgação
O estilista britânico é um dos últimos showmen da moda em atividade. Ao longo dos anos 1990 e durante a primeira década dos 2000, sua paixão por teatralidade, romantismo, rebeldia, subversão, drama e decadência resultaram em desfiles memoráveis.
Se hoje a narrativa, o storytelling é mais usado para desviar a atenção das roupas, para Galliano, ele é uma lente de aumento, a energia que dá vida e engrandece o que realmente interessa.
As roupas
Para o verão 2024 da alta-costura da Maison Margiela, John Galliano quis explorar o ritual do vestir. Para ele, o ato é similar ao processo criativo de uma obra de arte. Ao escolher uma roupa e colocá-la no corpo, estamos pintando e expressando o que está por dentro.
A partir daí, o estilista usa a imagem de um pintor e sua musa como ponto de partida. Outras referências que colaboram com a ideia são bonecas (daí a beleza de porcelana, assinada por Pat McGrath) e práticas de BDSM. Veremos por que logo mais. Por enquanto, podemos entender de onde vêm os looks não completamente vestidos, com partes de cima agarradas sobre o torso, alças caídas, a nudez velada e as poses.
Maison Margiela Artisanal, verão 2024. Foto: Divulgação
Maison Margiela Artisanal, verão 2024. Foto: Divulgação
Maison Margiela Artisanal, verão 2024. Foto: Divulgação
Da relação entre musa e artista, vem alguns efeitos de pintura. Como o dos vestidos transparentes com visual aquarelado. Inspirados nas obras do fauvista holandês Kees Van Dongen, eles são feitos de camada de tule tingido para se assemelhar a manchas de óleo, queimaduras de sol e incidência variada de luz. A aparência – meio fantasmagórica – é de que a modelo saiu de um quadro.
Outras peças fazem o caminho contrário: parecem reais, mas são desenhos. Calças, camisas e casacos de tweed, espinha de peixe ou gabardine, na real, são feitos de camadas de feltro e crepe de lã estampado com aquela textura. Tem ainda o degradê de bordados, que remete à degeneração das roupas, ao desaparecimento da memória.
Maison Margiela Artisanal, verão 2024. Foto: Divulgação
Maison Margiela Artisanal, verão 2024. Foto: Divulgação
Maison Margiela Artisanal, verão 2024. Foto: Divulgação
A memória também é base para construções de jaquetas e outros itens moldados aos hábitos de quem as vestem. Tipo cobrir a cabeça com a gola da jaqueta para se proteger da chuva. No verão 2024 da Margiela Artisanal, a peça já é costurada para tal ato.
A silhueta de cintura finíssima à la Belle Époque é trabalhada principalmente em corsets, enchimentos no quadril e em looks apertados, como se a roupa fosse alguns tamanhos menores do ideal. Para isso, Galliano e sua equipe usaram uma técnica que consiste em ferver peças de tweed, cola e crepe de lã para que sejam encolhidas de maneira irregular, preservando e realçando volumes anatômicos.
Somos a obra ou o artista?
Ao explorar o ato de vestir, Galliano aborda um tema recorrente nesta temporada: a relação entre indivíduo, corpo e roupa – parte central da alta-costura. Estamos falando de peças feitas única e exclusivamente para uma pessoa, sob medida e adaptadas para quaisquer necessidades e vontades.
O assunto ainda vem sendo reiterado com frequência como respostas aos avanços tecnológicos, em especial aos de inteligência artificial. Na Schiaparelli, o diretor de criação Daniel Roseberry falou sobre isso com todos aqueles aparelhos eletrônicos pré-2007.
Maison Margiela Artisanal, verão 2024. Foto: Divulgação
Maison Margiela Artisanal, verão 2024. Foto: Divulgação
Maison Margiela Artisanal, verão 2024. Foto: Divulgação
Maria Grazia Chiuri, na Dior, citou o pensador alemão Walter Benjamin – provavelmente o mais referenciado na moda ao lado de Roland Barthes – para abordar a autenticidade, o valor da criação humana e do trabalho manual. As paredes do seu desfile foram cobertas pela obra Big Aura, da artista Isabelle Ducrot. O nome vem do conceito de aura usado por Benjamin para diferenciar o original da cópia (sem aura).
O efeito degradê da coleção de verão 2024 da Margiela Artisanal foi aplicado a partir de um pensamento similar ao do filósofo alemão. Galliano explicou que o desaparecimento das texturas, das cores, do brilho acontece quando réplicas tentam reproduzir o original sem a vida, sem as memórias, sem as emoções. De novo, algo relacionado à alta-costura.
Maison Margiela Artisanal, verão 2024. Foto: Divulgação
Maison Margiela Artisanal, verão 2024. Foto: Divulgação
Maison Margiela Artisanal, verão 2024. Foto: Divulgação
As roupas moldadas a hábitos sociais também se relacionam com colocações de Benjamin. Em um dos seus textos sobre moda, o pensador explora o rastro, ou a memória, que deixamos em um tecido ou uma peça de roupa. Seja pelo usuário, seja pelo criador é outro conceito importante para a haute couture parisiense.
LEIA MAIS: O que é, quem faz, quais são as regras e tudo o que você precisa saber sobre a alta-costura
Porém, enquanto os demais membros da alta-costura se contentam com a objetividade superficial das ideias sobre se vestir, Galliano vai além. A figura da musa, por exemplo: nem sempre sua representação visual é de fato dela. Muitas vezes, é uma imagem moldada pelo artista sobre aquela pessoa, a partir dos próprios gostos e desejos.
Se nosso corpo é uma tela em branco, não deveríamos ser nós os pintores? Ou somos bonecas e marionetes vestidas e manipuladas por outros?
Contra regra
A temporada de couture de verão 2024 terminou ontem (25.01). Apesar de coleções boas e consistentes, tudo foi colocado em uma outra perspectiva e um outro patamar depois do desfile da Maison Margiela Artisanal. Não por questões técnicas, nem nada do tipo. E, sim, por ficarem com o que pedem as regras do momento, pura e simplesmente.
Galliano liga um bom foda-se e faz tudo ao contrário, do seu jeito. Não como antes, porque é melhor. É mais intenso, mais emocional, mais habilidoso. Primeiro, pelo tempo em que a coleção foi feita: ao longo de um ano, prazo impensável para grandes marcas, até na alta-costura.
Maison Margiela Artisanal, verão 2024. Foto: Divulgação
Maison Margiela Artisanal, verão 2024. Foto: Divulgação
Maison Margiela Artisanal, verão 2024. Foto: Divulgação
Segundo pela imagem provocadora, incômoda, pesada de carga emocional e psicológica. E ainda assim, dotada de uma beleza extrema. Com roupas de aparência simples e familiar, nada diferente do resto da temporada, a coleção desafia as convenções sobre beleza, ignora as políticas de postagem de algumas redes sociais. Alguns looks da coleção serão certamente censurados pelo Instagram.
E se o ato do vestir é similar à expressão artística, no sentido de apresentar visualmente o que se passa lá dentro, como fica essa história quando o que é interno não se conforma ou não se encaixa no que é aceito lá fora? Como a gente adapta o corpo, a personalidade, os sentimentos às fórmulas virais que estão trending?
John Galliano aponta caminhos para essas respostas através dos seus corsets apertadíssimos, enchimentos, alusões a bonecas, ao BDSM – ambos orbitam em torno da objetificação do desejo –, e todo o contorcionismo e atuação dos modelos.
Maison Margiela Artisanal, verão 2024. Foto: Divulgação
Maison Margiela Artisanal, verão 2024. Foto: Divulgação
Maison Margiela Artisanal, verão 2024. Foto: Divulgação
Tinha a mulher caminhando plena com um sobretudo que parecia feito de papelão molhado (era de organza de seda texturizada), o homem molhado, tremendo de frio, com guarda-chuva virado para cima e a garota com bandagens e gesso na cabeça, tirando e colocando o chapéu freneticamente.
Com o casting mais diverso (embora timidamente) nesta semana de alta-costura, a coleção é uma celebração de belezas, corpos, personalidades e desejos livres, desviantes, desafiadores e jamais conformados com manual de uma vida baseada em curtidas e engajamento.
Maison Margiela Artisanal, verão 2024. Foto: Divulgação
Maison Margiela Artisanal, verão 2024. Foto: Divulgação
Maison Margiela Artisanal, verão 2024. Foto: Divulgação
Fazia tempo que um desfile não causava impacto duradouro na nossa memória. Será que nos acostumamos com apresentações pasteurizadas e formulaicas, sem provocações e sem risco nenhum?
Lembra do inverno 2024 masculino da Loewe? Do discurso sobre como a internet nivelou tudo por baixo e deixou tudo igual, como se todo conteúdo tivesse de seguir a mesma cartilha de boas práticas? É isso.
Afinal, quem disse que a moda é sempre feliz e sorridente? Sempre bonitinha, arrumada e incapaz de provocar emoções mais intensas?
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