Domingos Tótora: designer usa papelão reciclado para criar mobiliário e objetos
Com os pés e a imaginação plantados na tradição mineira, Domingos Tótora cria olhando para um futuro em que o cuidado com a natureza e o respeito pela memória serão fundamentais.
Ao dar espaço ao imprevisível, a obra de Domingos Tótora faz uma ponte entre a terra e o céu. O artista não tem total controle sobre o resultado final da pigmentação de suas criações. A natureza é que se encarrega de dar o tom. “Eu sei aonde desejo chegar, mas, às vezes, sou surpreendido por cores inesperadas”, conta. “Esses imprevistos misteriosos dão mais vida ao processo.”
Observador atento de tudo à sua volta, o artista desde sempre foi atraído pelas variações de cor do solo mineiro, entre marrons, ocres e pretos. Com o faro aguçadíssimo, percebeu que essas nuances orgânicas dariam ainda mais expressão às suas criações. Foi então buscar um preparado de óxido de ferro em pó trazido de Rio Acima, um lugar das redondezas, para adicioná-lo junto com outros pigmentos minerais à massa processada de papelão reciclado, a matéria-prima de sua arte, antes de ela ganhar forma. E voilá, a alquimia aconteceu.
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Banco Estrada, em tonalidade bem terrosa. Fotos: Andrés Otero
De repente, Tótora interrompe a conversa e fica em silêncio total, seguindo com o olhar uma borboleta que passa por ali. Um segundo depois, vira para mim e recita o trechinho de um poema de Cecília Meireles, de quem é fã, sobre o inseto. Mergulhar no universo de Tótora é um pouco assim. Um desacelerar sem fim para entrar no ritmo sossegado do interior de Minas Gerais.
O designer vive e tem seu ateliê até hoje em Maria da Fé, uma cidadezinha de 17 mil habitantes fincada nos pés da Serra da Mantiqueira, onde nasceu. As montanhas arredondadas ao redor e a beleza imperfeita das casinhas caiadas do vilarejo sempre povoaram o imaginário de Domingos, que aprendeu cedo a se conectar com os movimentos da natureza e traduzir esse sentimento em suas criações.
“Outro dia, acordei bem antes de o Sol nascer e fiquei ouvindo o ruído dos insetos. De repente, tudo parou. Sobrou um silêncio profundo, penetrante, que eu nunca tinha ouvido antes. Foi o momento exato em que os sons dos seres noturnos pararam e os seres do dia, animados pela luz, começaram a se agitar.”
Sua postura e suas crenças explicam muito do sucesso que vem alcançando no exterior nos últimos tempos. Feitas de papelão reciclado e pigmentos terrosos, suas peças atuais têm uma força visual extraordinária e reúnem elementos que fazem eco às principais preocupações do mundo contemporâneo: o anticonsumismo, a reciclagem, o uso de materiais naturais. Sem contar que são um sopro de vida e beleza em tempos sombrios.
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“A arte sensível de Domingos Tótora incorpora a esperança de um futuro melhor, pois leva as pessoas a se sentirem parte dessa narrativa de mudança tão atual e urgente”, afirma a inglesa Sarah Myerscough, dona da galeria homônima londrina que o representa na Europa. Foi justamente ali, na mostra The Natural Rooms, que a obra dele chamou a atenção da Loewe Foundation – a entidade mantida pela poderosa grife de moda espanhola não resistiu e arrematou cinco bancos da linha Terrão. O sucesso levou os galeristas da Sage Culture, de Los Angeles, que o representam no resto do planeta, a inscrevê-lo no cobiçado Loewe Foundation Craft Prize 2022. Ao lado de outros 30 nomes, Domingos desbancou milhares de concorrentes e chegou à etapa final.
As peças únicas da linha Rupestre ganharam tom amarronzado. Fotos: Andrés Otero
Com uma obra sintonizada com seu tempo, o escultor já havia ensaiado alguns voos em outros eventos de design reconhecidos, em Londres, Paris e Milão, mas agora os holofotes internacionais se voltaram de vez para ele. “Ao longo dos tempos, ele desenvolveu um dos mais significativos trabalhos nesse segmento”, afirma Nicolas Alonso, dono da Sage. “A estética natural e orgânica da sua obra é impressionante”, completa a sócia, Marina Figueiredo. Não é de estranhar que as criações tenham ido parar no catálogo de outra galeria europeia cool, a belga Atelier Ecru Gallery.
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Numa harmonia quase intuitiva com as demandas do planeta, a produção de Domingos expressa as necessidades urgentes do ser humano pela preservação da vida, por isso extrapola fronteiras e assume um caráter universal. É mineira, sim, porém, do mundo. “Minha arte é sustentável na ação, e não no discurso”, alerta. “Mas eu nunca pensei no assunto de maneira objetiva porque nem se falava disso quando comecei.”
Discreto, metódico e, apesar de parecer o contrário, ultraconectado, Domingos tem a mente aberta para o mundo. Berlim e sua modernidade pulsante, por exemplo, encabeçam a lista (curta, diga-se) de lugares preferidos do designer. Ele já morou em São Paulo, onde fez cursos de arte, mas a alma e o coração pertencem mesmo a Maria da Fé. “Tem jeito, não. Aqui é o meu lugar”, diz com o delicioso sotaque mineiro, sacando palavras de Carlos Drummond de Andrade, outro de seus poetas preferidos, para explicar esse amor incondicional: “Minas não é palavra montanhosa, é palavra abissal. Minas é dentro e fundo…”
Esculturas da série Abissal, com formas orgânicas e mix de tonalidades. Fotos: Andrés Otero
Sem dúvida, a sua vida e a sua trajetória se misturam com as do lugarejo. Ainda são fortes as memórias da infância na roça, de pés descalços e mãos na terra. Lá no fundo, ele ainda guarda o menino tímido, calado, que costumava brincar sozinho e preenchia as paredes do casarão da família, na Fazenda Contendas, com desenhos. O pai, o fazendeiro Darci, não via a arte do filho com bons olhos. Já a mãe, a professora Isaura, o incentivava sem parar. Nessa época, ele também ajudava mulheres da comunidade a escavar os barrancos próximos em busca de tabatinga, um barro branco tradicionalmente usado para caiar as casas de pau a pique.
As lembranças mais queridas, porém, vêm da avó Marta, boa de quitutes e de prosa e descendente direta de Maria da Fé, a mulher que em 1760 ganhou uma sesmaria do rei de Portugal e deu seu nome à cidade. “O aroma dos assados, do feijão com arroz, da marmelada e de outras delícias saídas do fogão a lenha, além das conversas sobre os antepassados, é como tatuagem para mim”, diz.
Com um pé no passado e outro no futuro, Domingos valoriza as influências pessoais e culturais como uma forma de garantir a alma e a originalidade de suas criações. “Vivemos em uma sociedade baseada na globalização, por isso a importância de resgatar a memória para não perdermos a essência da nossa cultura”, reflete.
“Para mim, a novidade está sempre circunscrita aos limites da tradição.” O resultado é uma produção de alto significado, com a sua inconfundível assinatura. Ele não está fechado a experimentar outros materiais, mas sabe que ainda não esgotou todas as possibilidades com a massa de papelão, uma matéria extremamente plástica, que permite um diálogo com resposta imediata.
Depois de trabalhar com metal e cera, o papelão surgiu quase por acaso em seu caminho, 20 anos atrás. Domingos dava aula de artes para crianças em Maria da Fé quando descobriu a enorme quantidade do material descartado pelos supermercados e decidiu fazer uma experiência, colocando as sobras de molho na água. “Fiquei surpreso com a plasticidade da massa formada, que, depois de seca, apresentou uma textura especial, semelhante à da casca de árvore”, lembra. “Eu percebi beleza e potencial nessa matéria-prima para criar a minha arte.”
Quase alquímico, o processo de produção começa logo após a coleta do papelão, deixado de molho por 24 horas, em seguida processado e pigmentado com terra pura da região. Tudo em meio à algazarra de seus cinco cachorros, todos adotados, e com a ajuda fundamental de um time de dez artesãos, que trabalham nos bastidores. “Às vezes, desenho as peças antes. Às vezes, as ideias surgem misteriosamente durante o processo.” Não importa.
Fotos: Andrés Otero
Em comum, esculturas, painéis, móveis e objetos, itens de absoluto desejo, apresentam um magnífico apelo sensorial, realçado, em especial, pelas tonalidades do vermelho-ferrugem da terra, cor que, para ele, evoca a origem de tudo.
É quase impossível não se render ao impulso de tocá-las. “Eu mesmo vivo abraçando minhas peças”, diz, se divertindo. Original como poucos, Domingos é movido pelo desejo de provocar a emoção. Ele próprio se considera um escultor que, ao descobrir a fronteira tênue entre a arte e o design, decidiu se aventurar por esse universo multidisciplinar. “A busca incessante por qualidade de vida modificou muito a relação do homem com o objeto”, pondera. “Todas as nossas experiências estão expostas a vários estímulos visuais e informações que nos permitem ativar sentimentos.”
De sensações, Domingos entende. Só alguém sensível como ele para se emocionar com detalhes do cotidiano: do sabor ácido da lichia ao perfume de um pé de glicínia que fica pertinho na varanda. Por isso, nem parece, mas o designer vive em luta contra a ansiedade, razão das sessões diárias de meditação. “É perfeito para mim. Pacifica a alma.” Suas obras pacificam a nossa e nos remetem a um mundo melhor.
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- Esta reportagem foi publicada originalmente na edição impressa do volume 1 da ELLE Decoration.
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