Joice Berth questiona a quem pertence a cidade em que vivemos

Em seu novo livro, a arquiteta e urbanista discute gentrificação, mobilidade urbana e outros temas a partir de questões de raça e gênero.


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Joice Berth, autora de "Se a cidade fosse nossa". Foto: Bertolino Caetano



Uma das vozes emergentes do feminismo negro brasileiro, Joice Berth é conhecida por seus textos que abordam a cultura pop e assuntos que estão no noticiário por um viés que surpreende e convida à reflexão. Na coluna que assinou por três anos no site da ELLE, a escritora falou de temas como o apagamento de artistas negros na cultura brasileira, a importância de se incluir a questão racial na discussão sobre etarismo e até sobre Wandinha Adams.

Talvez nem todos os seus leitores saibam, mas Joice Berth é também arquiteta e urbanista – e é nessa área de atuação que ela se aprofunda em seu novo livro. Em Se a cidade fosse nossa (Ed. Paz & Terra, 288 págs. R$ 69,90), a autora lança mão de uma análise interseccional para pensar o direito à cidade através das diferentes perspectivas de raça e gênero.

Longe da radicalidade, mas com uma visão contundente, Joice transita entre Filosofia, Sociologia, Urbanismo e Psicanálise. A filósofa e ativista Angela Davis, o geógrafo e intelectual Milton Santos e outras referências vêm à tona para questionar, como implícito do título, de quem é essa cidade em que vivemos. E mais: o que seria dela se fosse apropriada pelo povo? 

livro Joice Berth

Da reivindicação de políticas públicas voltadas para a moradia da população negra ao debate sobre a derrubada ou não de estátuas que homenageiam episódios vergonhosos da nossa História, a caneta de Joice Berth atravessa múltiplas facetas ao tomar a cidade como uma arena de disputa política. Em meio a trabalhos mil, eventos de lançamento e cuidados com seus quatro filhos, Joice conversou com a reportagem da ELLE sobre a nova obra. 

Como você começou a escrever este livro?
Na verdade, o livro era um compilado de anotações que fui resgatando e desenvolvendo. Eu tenho um processo de escrita que é muito curioso: estou aqui, conversando com você, e estão passando mil coisas pela minha cabeça. Costumo fazer algumas anotações, alguns apontamentos, e vou buscar isso mais tarde com outros autores para referenciar. Enfim, é um processo meio louco mesmo. Eu fui  resgatando essas coisas, desenvolvendo raciocínios e relembrando conversas. Porque o caminho de reflexão não é uniforme, não é linear, especialmente porque não temos referências nessa área, pelo menos no Brasil. Então, eu tive que transitar entre Sociologia, Filosofia e as questões urbanas, os teóricos que já estão dentro do debate do urbanismo e direito à cidade e falam sobre desigualdade. Ao mesmo tempo, eu dialogo com Milton Santos e com Raquel Rolnik (arquiteta e urbanista).

O livro começa com as memórias da sua infância na zona norte de São Paulo, mas logo avança para uma comparação com a mesma região hoje. É muito marcante quando você descreve que as crianças não brincam mais na rua, as casas deram lugar aos prédios. Você não diz isso no livro, mas tenho quase de certeza que alguns mercadinhos de bairro também foram engolidos por redes de lojas de conveniências. Enquanto urbanista, como você avalia essa tomada da cidade pelas marcas?
A gente fala muito na gentrificação como esse processo visível, palpável, de as pessoas se deslocarem de onde moram pra uma outra região, porque a especulação imobiliária e processos políticos que acontecem na cidade vão empurrando as pessoas. Mas tem também os outros efeitos disso, que são justamente o que você está falando: aquele mercadinho, que era o lugar onde a gente ia comprar doce no meio da brincadeira, hoje em dia é um mercado elitizado e, com uma moedinha de 1 real, a gente já não consegue consumir lá. Aquela pracinha onde a gente tanto gostava de confraternizar, de fazer novos amigos, pra estar ali, batendo papo despretensiosamente, já não existe mais. Virou garagem, mais um estacionamento, porque abriu um bar e atende muitas pessoas no fim de semana. Então, você vai perdendo espaços de convivência entre as pessoas que eram uma característica que eu ainda peguei do meu bairro. Faço parte de uma geração que ainda teve o costume de brincar na rua, brincar de queimada, ir na pracinha, soltar pipa. As crianças (hoje) não têm mais muitas possibilidades, exceto nas periferias, que ainda não foram tomadas por esse movimento de expulsão. Acho que isso é um retrato do aprofundamento das desigualdades que as cidades dizem pra gente que está acontecendo. E, por outro lado, isso está mexendo com a psique de todo mundo. Porque você não consegue mais construir pertencimento. O pertencimento não é só você estar ocupando um espaço, mas estar mais focado na relação que você consegue construir dentro daquele espaço, seja na sua casa, seja com a cidade, com o gosto por estar naquele lugar e saber que você faz parte daquele cenário, não como um objeto, mas como alguém que produziu aquilo conjuntamente.

No livro, você menciona a necessidade de criar políticas públicas racializadas para moradia. Pode falar um pouco mais sobre isso?
As desigualdades não são algo homogêneo, que é sentido e experienciado por todo mundo da mesma forma. A partir do momento que você tem a desigualdade sendo caracterizada pela raça e pelo gênero, não só pela classe econômica, que é como se acostumou a pensar no Brasil, é preciso lançar mão da interseccionalidade como uma teoria aplicável à nossa realidade, e que vai fazer com que a gente se aproxime mais de uma resolução que abarque a todos que estão naquela vivência precarizada. Então, é preciso racializar. Se são as pessoas negras que estão na maioria no déficit habitacional, é preciso fazer alguma coisa direcionada para essa população negra. Você tem que compreender por que a população negra é a mais atingida. Se você tem uma cidade onde a maioria esmagadora das mulheres relatam que já sofreram assédio nas ruas, que se sentem inseguras, que não têm uma mobilidade plena no seu cotidiano, então, você tem que fazer políticas, pensar em políticas direcionadas (a esses problemas). E essas políticas, por sua vez, têm que partir de um estudo do nosso andamento histórico, de como a gente chegou àquela situação. A característica imediatista do Brasil é algo que atrapalha muito, porque as pessoas querem resolver algo de imediato, sem se dar conta de que o que acontece agora foi construído, tijolo por tijolo, desde os primórdios do que a gente como país.

Uma passagem marcante é quando você discorre sobre esculturas e memória da cidade, relembrando o levante mundial contra estátuas de antigos proprietários de pessoas escravizadas. “Esses símbolos, que são verdadeiros marcadores físicos do pensamento social, compõem as estruturas de opressão, controle e dominação. São modos de manter vivos, ainda que de forma anacrônica, ideais que representam as violências históricas destinadas a grupos politicamente oprimidos.” Mas, logo em seguida, você afirma que a simples derrubada das estátuas não resolveria o problema. Por quê?
É porque se você vai lá e simplesmente derruba suas histórias, não provoca a consciência coletiva do motivo pelo qual aquilo foi parar ali. E aquilo precisa ser questionado. Esses marcadores foram colocados na cidade para consolidar fisicamente um pensamento social daquela época. Naquele momento, as pessoas estavam conscientes de quem eram aquelas pessoas ali sendo homenageadas e sabiam muito bem das práticas que estavam envolvidas, e as pessoas concordavam. Por isso aquilo permaneceu ali. É preciso fazer o caminho inverso: conscientizar as pessoas desse passado histórico violento, macabro, que vitimou muita gente — e aí você vai olhar para aquelas estátuas, apontar e fazer a sociedade compreender até que ponto aquilo está marcando subjetivamente a história dela. Até que ponto a sociedade continua vinculada àquilo de alguma forma? Simplesmente tirar um símbolo desse, sem gerar um debate, pode ser perigoso, na verdade. Porque você pode estar suprimindo uma parte da história que poderia elucidar exatamente aquilo que aconteceu. Acho que a gente precisa de conscientização profunda. Como fazer com que a sociedade pare de se identificar com aquilo que está ali, aquele valor, ainda que inconscientemente? Porque há uma identificação inconsciente, tanto é que a maior parte das pessoas não se incomoda (com as estátuas). Como romper com isso? Como estimular uma conscientização nas pessoas para que elas façam uma ruptura com esse vínculo de memória e questionem a permanência daquele símbolo? A provocação é essa.

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