O design iconoclasta e bem-humorado dos Irmãos Campana

Ao olhar curioso sobre a riqueza cultural brasileira, Humberto e Fernando Campana adicionaram um jeito inconformista de ver, usar e reinventar os materiais.


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Foto: Thomas Tebet



Humberto e Fernando Campana (1961-2022), os Irmãos Campana, conquistaram o mundo com uma verve transgressora, materializada na linguagem disruptiva e de forte viés artístico de suas criações.

Os dois quebraram barreiras na cena do design ao subverter objetos, transformando materiais cotidianos em móveis, luminárias, esculturas e peças de múltiplos apelos. Sempre transitaram pelo natural, industrial, chic, barroco ou o vernacular, profundamente enraizado na cultura e nas tradições brasileiras, de forma orgânica.

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Peça da a série Sopro na Argila, que fez parte da exposição Polifonia Campana, na Luciana Brito Galeria. Foto: Edouard Fraipont

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Cedo os irmãos souberam que tinham esse dom para inventar narrativas desconcertantes. Ainda crianças, em Brotas, onde viviam, já deixavam a imaginação ir longe na construção de diques, casas na árvore, naves espaciais, circos, trapézios, teatros e mil outras ideias, sempre com pedaços de madeira, cipós, galhos e o que mais encontrassem nas redondezas – o que, mais tarde, influenciou o gosto deles em especial por tudo o que é natural, como a palha, o vime, o barro e a fibra de coco. Já nessa época a identidade do Estúdio Campana, criado pela dupla nos anos 1980, dava seus primeiros sinais.

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Humberto e Fernanda Campana. Foto: Thomas Tebet

A infância dos irmãos Campana

Nessa cidadezinha, no interior de São Paulo, eles tiveram uma infância ultraconectada à natureza, à fantasia dos personagens de Monteiro Lobato e aos filmes exibidos no Cine São José. Um dos preferidos, o épico de ficção científica 2001: Uma Odisseia no Espaço, do diretor Stanley Kubrick, os lançou numa viagem ao espaço sideral. De onde talvez suas mentes nunca tenham voltado.

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A cachorrinha Chica, com a coleção Chica, do Estúdio Campana. Foto: Reprodução @estudiocampana

Fernando sonhava ser astronauta, abandonou a ideia no meio do caminho, mas não o desejo de voar. “Lá em cima, a sensação de leveza é incomparável, só se escuta o vento”, dizia sobre os seus voos de asa-delta e planador. Humberto gostava de olhar as estrelas. Até hoje segue ligadíssimo na natureza e no céu. Na fazenda da família, onde será inaugurado o Parque Campana, em 2024, um de seus maiores prazeres é, à noite, mirar demoradamente a imensidão do universo.

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Cadeira Quebra-Cabeça, edição limitada para as galerias Friedman Benda e Carpenters Workshop. Foto: Thomas Tebet

 O lugar, um santuário a céu aberto com um pé na arte e outro na educação, será também uma espécie de tributo a Fernando, que morreu repentinamente há um ano sem ver realizado um dos seus últimos sonhos. “A vida me deu tanto”, diz Humberto. “O parque é uma forma de devolver, de educar as novas gerações.”

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Cadeira Raquete, do Estúdio Campana. Foto: Reprodução @estudiocampana

Do Estúdio Campana, uma galeria-laboratório escondida atrás de uma imensa porta industrial verde-água, que abriga parte da obra da dupla, saem peças únicas ou séries limitadas consagradas, fabricadas artesanalmente ali e depois expostas nas principais galerias de design autoral contemporâneo do planeta, como a Carpenters Workshop e Friedman Benda, nos Estados Unidos, a brasileira Luciana Brito Galeria, e a italiana Giustini / Stagetti.

Recentemente, alcançou também a Índia, onde Humberto imaginou novas possibilidades para uma fibra nativa local e, ao mesmo tempo, homenageou máscaras indígenas brasileiras ao assinar uma colaboração criativa com a galeria Aequõ, de Mumbai.

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Peça da coleção Atuxuá, exposta na galeria Aequõ, de Mumbai. Foto: Reprodução @estudiocampana

Os irmãos Campana e a moda

Esse espírito maker genial, presente desde o início, quando garimpavam materiais em brechós e ferro-velhos, se manteve intacto mesmo nas produções em larga escala para as grandes labels de design e de moda do planeta: a marca Campana é destaque no portfólio da Louis Vuitton, Fendi, Lacoste, Edra, Lasvit, Artemide, entre outras bacanas, além de produzir joias, cenografias e decorações de hotéis, lojas, espetáculos de balé e restaurantes, um deles, o charmoso Café Campana, no Musée D’Orsay, em Paris.

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Humberto atrás da cadeira Cocoon, da coleção Objets Nomades, para a Louis Vuitton. Foto: Thomas Tebet

Humberto sempre gostou de chão de fábrica e de acompanhar tudo, mesmo à distância, até as obras ganharem forma. Na primeira colaboração com a Edra, no final dos anos 1990, o irmão o filmou tecendo manualmente a poltrona Vermelha, com 500 metros de um único fio de corda, para ensinar os artesãos da marca italiana a fazer a trama e os nós com perfeição. Deu tão certo que a peça, uma das criações mais icônicas da dupla, integra o acervo permanente do MoMA, em Nova York.

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A Cadeira Vermelha, primeira colaboração com a Edra. Foto: Cortesia Edra.

Agora sozinho à frente do estúdio, aos 70 anos, o designer ainda exibe a alma leve, inquieta e irreverente do menino de Brotas, que sonhava em ser um indígena da Amazônia. Hoje, a sua única vaidade é seguir surpreendendo o mundo com o seu choque de materiais. “Me recuso a envelhecer”, afirma esse artista supersensível e espiritualizado.

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Humberto Campana. Foto: Bob Wolfenson.

 

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